Ferrante e Almodóvar: ruptura e romantização nos padrões impostos às mulheres
- 2 de abril de 2022
Narrativas elaboradas por mulheres ampliam representações e permitem ir além de papéis historicamente atribuídos a nós
Por Tainá Jara
Arte por Marina Duarte
Pode ser que faltem formas de expressão para externalizar séculos de padrões impostos a nós, mulheres. Na escrita, na fala, na arte, no megafone, ou no empenho diário para fazer um bom trabalho, seja no mercado ou em casa, a gente tenta contar a história sob a nova perspectiva ao mesmo tempo que ainda tenta se libertar de tanta opressão.
É nesse movimento constante, e algumas vezes desarticulado, que ganhamos espaço, nos impomos e também descobrimos nossas contradições, individuais e coletivas, o que torna tudo mais emocionante e também dolorido. Quanto mais nos aprofundamos, mais sentimentos, dilemas e incômodos descobrimos.
Muitas dessas narrativas, mesmo as feitas sob novas perspectivas, inevitavelmente esbarram na representação de padrões impostos às mulheres. Eles permeiam todas as fases da vida. Estão com a gente da juventude a maturidade.
Quando se é jovem é preciso procurar um pretendente, casar, ter filhos, ser a dona de casa exemplar. Na maturidade, o papel de esposa que cuida do marido e filhos parece apenas um estágio para ainda desempenhar com os idosos. Parece nunca faltar emprego e função para as mulheres na instituição família, cuja remuneração muitos dizem ser paga em afeto e realização pessoal.
As que fogem a esses padrões são julgadas. Mesmo aqueles que dizem nos amar, se beneficiam dessa estrutura. Sejam jovens ou velhos. Homens ou mulheres. Se acomodam ao roteiro que lhes foi passado pela sociedade patriarcal. E causam à outra uma culpa profunda por escolhas que não infringem nenhuma lei palpável.
No livro “O Segundo Sexo – Fatos e Mitos”, Simone de Beauvoir utiliza a dicotomia imaculada/profana para exemplificar o caráter mutilador de tais padrões. Papéis historicamente atribuídos a nós: a imaculada, associada à imagem da mãe; enquanto a profana remete às bruxas. “Na realidade concreta, as mulheres manifestam-se sob aspectos diversos; mas cada um dos mitos edificados a propósito da mulher pretende resumi-la inteiramente” (BEAUVOIR, 2016, p. 330)¹.
Os aspectos diversos aos quais Beauvoir se refere ganham espaço em produções cinematográficas como a Filha Perdida (2021), dirigida por Maggie Gyllenhaal, inspirado no livro da escritora italiana Elena Ferrante. Com voz predominantemente feminina, algo ainda pouco corriqueiro na sétima arte, a produção fala da ruptura de Leda (Olivia Colman) com um destes padrões: o papel de mãe.
A protagonista deixa as filhas com o marido por três anos para ter outra vida. Mesmo passado décadas, a culpa a persegue e dias de descanso se convertem em aflição.
Reações, sentimentos e reflexões profundas da personagem demonstram como pode ser cruel seguir o próprio desejo e fracassar, mesmo que por algum momento, no equilíbrio de papéis. Abrir mão do padrão socialmente imposto pode causar traumas quando o mundo diz que o contrário é o certo.
Almodóvar é um exemplo de cineasta bem-sucedido ao colocar a voz feminina em primeiro plano. Calcou sua carreira nisso. Mesmo ele foi impactado pela fidelidade das produções feitas por mulheres. É impossível não perceber a insuficiência da sua narrativa, frente às elaboradas por nós, em seu último filme: Mães Paralelas (2021).
Ao abordar a história de duas mães solos, o diretor tenta fugir dos padrões de protagonistas, porém, acaba por romantizar tal papel ao trazer para telas uma Janis (Penélope Cruz) impecavelmente linda, arrumada e incansável, mesmo com um bebê de poucos meses em casa e outros inúmeros dilemas femininos. Talvez a gente tenha mudado nossa percepção sobre essas questões e não necessariamente ele.
¹ BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.