Comportamento geral
- 4 de março de 2022
Por Igor Nolasco
Crônica de mais um ano sem carnaval
Pandemia, ano três. Após um recesso não-planejado, estamos de volta com nossa coluna na Badaró. O que mudou desde que estivemos nesse espaço da última vez? Infelizmente, não muito.
Bom, vamos às notícias: mais um ano sem carnaval. Pero no mucho, é verdade: o feriado seguirá em vigor; os desfiles das Escolas de Samba no Rio de Janeiro foram adiados para abril; bailes privados e eventos em locais fechados seguem aprovados. O que foi vetado, mesmo, foi o carnaval de rua. Ao menos oficialmente, isso é: a agremiação popular não foi chancelada pelo poder público. Volto ao Rio de Janeiro como exemplo, porque é daqui que escrevo e, por ser de onde vejo o mundo, ocupa uma posição central na minha ótica de cronista: os blocos cariocas precisam necessariamente de uma permissão da prefeitura para estarem na rua. Pelo segundo ano seguido, não a receberão.
Há muito o que ser discutido sobre essa questão, que já foi colocado de forma inteligente e em maior ou menor extensão por intelectuais públicos do calibre de Flávia Oliveira e Luiz Antonio Simas. Por aqui, limito-me a matutar sobre questões que já circulam pelo senso comum: festas lotadas de gente sem máscara atolada em salões fechados já estão por aí desde antes da vacinação chegar à maior parte dos brasileiros.
Apresentações musicais que contabilizam público de milhares, como a da cantora Anitta no sábado, 12 de fevereiro, na cidade de São Paulo, vêm acontecendo em frequência cada vez maior – isso sem falar nos eventos promovidos pelos artistas expoentes do sertanejo universitário, casta (com suas exceções, que são populares também) intimamente ligada ao bolsonarismo e ao agronegócio que desde o dia um da pandemia jamais deixou de promover as maiores aglomerações possíveis, em um momento no qual a vacinação, num Brasil de Jaíres e Mandettas, sequer era vislumbrada em um futuro próximo. Não precisamos nem falar sobre os estádios de futebol com arquibancadas cheias, ou o transporte público superlotado e lacrado como uma lata de sardinhas que o trabalhador é obrigado a encarar numa base diária à revelia de sua vontade. E aí, pode tudo, menos o carnaval de rua? Por que?
Isso é o show de ontem da Anitta.
— Amy Lee versão PÃO DE QUEIJO LULA DA SILVA (@ThabataRiani) February 13, 2022
O sustento de inúmeras famílias foram colocados em risco pois acredita-se que não é seguro ter desfile no carnaval. Como se os protocolos estivessem sendo seguidos em algum lugar…
Memorizem esse print, é a prova que SIM, existe um projeto! pic.twitter.com/Jy3jH0ftUY
Há quem defenda que, em eventos como o supracitado show de Anitta ou os bailes e festivais privados já agendados para o período do carnaval ao redor do Brasil, os frequentadores estariam mais seguros do que em um bloco popular, pois ali seria exigida a apresentação do comprovante de vacinação para entrada. Bom, vamos por partes.
Parte um: a partir do momento em que a transmissão e o contágio entre vacinados ainda é possível (ainda mais com as variantes mais contagiosas que não param de surgir, como a ômicron), isso significa de pouco a nada.
Parte dois: considerando falsificações de comprovantes e possível leniência por parte das organizações de eventos, não há como garantir que cem por cento dos presentes em meio a grupos de milhares enfurnados em um show, uma casa de festas, boate ou coisa que valha, estejam vacinados. Ademais, muitos desses locais não pedem a apresentação de resultados de testes que detectam a COVID, o que significa que mesmo uma pessoa que apresente um comprovante de vacinação legítimo à entrada não estaria necessariamente impedida de ser uma transmissora em potencial.
Parte três: o que parece latente é que o Estado (com “E” maiúsculo, o governo federal) e o estado (em caixa baixa, estadual e municipal) não parecem legitimamente preocupados com os perigos de grandes aglomerações, num geral. O que parece ser a maior questão, para eles, é a de que, ante a aprovação para o carnaval de rua, um possível aumento de taxa de infecções, internações e óbitos venha a ser relacionado ao poder público. O que o poder público não quer, mesmo, é ser responsabilizado.
Parte quatro: isso tudo não deixa de parecer uma medida francamente higienista e digna de um Rio de Janeiro do início do século passado, onde prefeitos derrubavam morros, destruíam cortiços e desalojavam centenas de famílias pobres para empreender reformas urbanas e deixar a cidade mais “cosmopolita”. Explico, apesar do que sequer preciso, pois quem está na mesma página já entendeu: aproveitam-se da pandemia para tirar das ruas uma comemoração inalienavelmente popular, aberta e de todos, uma rara ocasião na qual expoentes de classes sociais diversas convivem em nível de igualdade, um momento anual de expurgo da rotina da maior parte dos brasileiros, e ainda assim um momento no qual tantos trabalhadores, do vendedor ambulante ao organizador do bloco, conseguem tirar muitas vezes o que é seu sustento para o ano todo. A quantidade de famílias que dependem do carnaval de rua é imensurável, bem como a felicidade de quem, nele, encontra quatro dias lúdicos e livres que só voltarão a se repetir no ano seguinte. Isso porque não estamos falando do carnaval das Escolas de Samba, que, pelo menos por esse ano, conseguiu a aprovação legal para acontecer, apesar do adiamento.
Sabe, isso tudo me lembra um velho samba de Gonzaguinha, que de velho, na verdade, não tem nada; talvez já possa ser chamado de “clássico” – soa mais adequado. É o Comportamento Geral:
“Você deve notar que não tem mais tutu
E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre um ar de alegria
E dizer, ‘tudo tem melhorado’
Você deve rezar pelo bem do patrão
E esquecer que está desempregado
Você merece
Você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba
E amanhã, seu Zé,
Se acabarem com o seu carnaval?”
E, décadas depois, de fato acabaram com o carnaval do seu Zé, o arquetípico brasileiro esquadrinhado por Gonzaguinha. Pero que si, pero que no, ainda há alguns aspectos carnavalescos: o desfile de Escolas (que a maior parte das pessoas só vê pela televisão), os eventos em lugares fechados (onde pobre não entra e, lembremos, a taxa de transmissão da COVID é maior), a data do feriado. Mas o carnaval de rua, o carnaval do seu Zé… Bem, se não acabou, pelo menos está adiado indefinidamente.
Vai saber quando as coisas estarão seguras o suficiente para o poder público voltar a assumir a responsabilidade de arcar com um evento aberto desse porte – e quando a pressão será tamanha que precisará ter a boa vontade de voltar a chancelar a festa popular, cujo cancelamento nos últimos dois anos, com todas as questões sanitárias e sociais envolvidas, parece ter agradado tanta gente de certos grupos seletos.
Sabem, apenas para fechar o raciocínio, vou confessar uma coisa a vocês. Quando me foi dada a oportunidade de ocupar esse espaço na Badaró, me foi cedida uma liberdade praticamente irrestrita de discutir o que me viesse à cabeça dentro das áreas de arte, cultura e opinião. À época, impus a mim mesmo a diretriz de me reter ao cinema, pois é a área de minha formação e acredito que seja o tópico para o qual possuo mais lenha pra queimar. Mas o texto que antecede esse parágrafo, mistura de giro de notícias, crônica e desabafo, não tem nada a ver com cinema. Então vou fazer uma coisa aqui para que eu possa dormir tranquilo a noite e para indicar a vocês uma obra que considero digna de atenção: assistam ao filme “Nossa Escola de Samba” (1965), dirigido por Manuel Gimenez e produzido pelo grande Thomaz Farkas.
É um curta-metragem de vinte e nove minutos sobre como a preparação para o desfile de carnaval da Escola Unidos da Vila Isabel gerava uma intensa mobilização popular no Morro do Pau da Bandeira, no Rio de Janeiro. É um filme lindo, em todos os sentidos sociais e imagéticos. Está disponível legalmente e em alta definição nos canais mantidos pela família de Farkas. Vejam, vejam. É um bom remédio para jamais esquecer a verdadeira força por trás do carnaval: a mobilização popular. Porque o carnaval brasileiro é, e sempre vai ser, no cerne de sua essência, uma festa genuinamente popular.
O que fazem do carnaval sem o povo… bem… é outra história. E dá muito pano pra manga: os bailes de carnaval privados da primeira metade do século vinte, a demolição da Praça Onze no centro do Rio por Getúlio Vargas… enfim… aí já é papo para outro dia.