MTST: ocupar, resistir e criar o poder popular
- 21 de janeiro de 2022
Coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), Ramon Andrade falou sobre militância, direito à moradia e conjuntura política
Entrevista por Carolina de Mendonça
Arte por Norberto Liberator
Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (NR)
Constituição Federal
Moradia é um direito humano universal, garantido pela Constituição Brasileira desde 2000, por meio de uma emenda constitucional. Contudo, por conta da lógica capitalista, há uma omissão do Estado na consolidação desta garantia, que assegura lucros para a burguesia através da especulação imobiliária.
Tal direito é alienado a uma parcela vulnerável e expressiva da população do Brasil. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) revelam que em março de 2020, ao menos 200 mil pessoas se encontravam em situação de rua no país.
Além de ter um teto, é preciso ter dignidade para morar. Casas confortáveis e adequadas à necessidade de seus moradores, com energia elétrica, acesso a redes de internet e saneamento básico, são algumas das condições fundamentais para uma vida minimamente saudável e adequada. Externo à moradia, é necessário ter direito à cidade, bairros com acesso ao transporte público, escolas, creches, Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e proximidade a hospitais, órgãos culturais, espaços com natureza, dentre outras garantias.
A pandemia de Covid-19 denunciou as dificuldades do acesso à habitação de qualidade e direito aos espaços urbanos como elementares para a mortalidade – afinal, para muitos, não se era possível ficar em casa ou lavar as mãos adequadamente, além de retrocessos como aumento do abandono escolar ou a diminuição da presença feminina no mercado de trabalho. Tudo isso num contexto em que a fome retorna como um grande problema no país.
Frente ao caos escancarado do projeto neoliberal, movimentos sociais se organizam para garantir, à população, dignidade e fortalecimento da luta pelo poder popular. É o caso do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), que atua em territórios urbanos em diversos estados brasileiros. A Revista Badaró conversou com Ramon Andrade, mestre em Direitos Humanos e coordenador nacional do movimento, com atuações territoriais no estado de Sergipe, que falou a respeito da atuação do grupo, além de dificuldades e possibilidades de avanço em meio a atual conjuntura.
Badaró: Como surge o MTST e como ele se organiza atualmente?
Ramon Andrade: O MTST surge do entendimento de que os trabalhadores urbanos precisam da luta organizada para garantir uma cidade que seja digna para todos. Partimos do pressuposto de que a cidade precisa assegurar para as pessoas que moram nela: teto, comida, trabalho, educação, saúde. Nós surgimos contrários à concepção de que esse direito está consolidado a partir de um espaço que produz muito concreto e, não necessariamente, muita dignidade para seus habitantes.
Entendemos que só a luta organizada é capaz de mudar isso, a partir da compreensão de direito à cidade, viver no espaço onde nós sejamos capazes de manifestar nossas individualidades com respeito, com dignidade e que só será alcançado a partir da luta coletiva.
O MTST hoje se organiza principalmente em ocupações, mas no ano de 2021 passamos a desenvolver o trabalho territorial das cozinhas solidárias. Estamos presentes em 14 estados e em processo de consolidação nos demais territórios desse Brasilzão.
Como se dão as ocupações e como o MTST, a partir dessas, cobra ao Estado estruturação de políticas públicas de saúde, educação, transporte, entre outras, na região?
Quando há um processo de ocupação, sempre há um processo de luta organizado anteriormente. A gente desenvolve trabalhos nos territórios com as pessoas mostrando que é possível viver de uma outra forma e que a gente precisa estar juntos para isso. Consolidamos esse trabalho e a partir disso fazemos as ocupações para lutar por moradia e por outros direitos que são básicos.
Quando há uma ocupação no bairro, há necessariamente, a partir da formação do movimento, o entendimento de que é preciso ter ali uma UBS que funcione, de que ali é possível ter uma escola para nossas crianças. A ocupação surge com famílias organizadas para lutar por moradia, mas disseminando sempre que o entendimento de moradia é importante, mas que só ela não vai trazer a dignidade.
A gente não quer, por exemplo, conquistar casa e continuar passando fome ou conquistar a casa e continuar não tendo saúde, educação. Nós lutamos por tudo isso. A presença de uma ocupação organizada, como são as do MTST, faz com que naturalmente as lutas para que os demais direitos nos bairros também sejam conquistados.
Como se dão estratégias de saúde nas ocupações do movimento?
Dentro do movimento, nós temos setores, que são militantes que ajudam na organização a partir da sua especialidade técnica, ou seja, a partir daquilo com que eles trabalham.
Nós temos o setor de comunicação, de arquitetura e em alguns estados e estados nós conseguimos consolidar o setor de saúde, nos quais temos alguns trabalhadores da área que acompanham os acampados, os militantes do MTST, proporcionando a eles acesso a esse direito que é básico.
Foi muito fundamental durante a pandemia para reforçar todos os cuidados que eram necessários tomar para se proteger do vírus. Essa pandemia mostrou que ter um teto, ainda que precário, poderia ser o diferencial pra gente se infectar ou não, ou seja, pra gente ter a possibilidade de morrer ou continuar vivo.
Foi fundamental a presença desses militantes que também são profissionais de saúde no contato com o povo, para falar da importância do uso da máscara, de higienizar as mãos. Todo esse processo foi fundamental para que a gente chegasse vivo até aqui após essa pandemia.
Há um forte movimento de tentativa de criminalização de movimentos sociais no país. Como o MTST tem sofrido com isso?
Criminalizar os movimentos sociais é criminalizar a luta do povo contra os abusos de poder. O que a gente faz, é lutar por nossos direitos. E em uma democracia, isso não deveria ser nem de longe motivo para represália.
A gente tem sofrido muito com a truculência policial aqui no estado de Sergipe, com ameaças a nossa direção, aos nossos acampados. A entrada da polícia sem ordem judicial dentro dos barracos, que para aquelas pessoas é a casa delas, então sem mandado não poderia acontecer. Isso reflete um pouco o retrocesso que o nosso país vem vivendo. De crise democrática e ascensão do fascismo.
Mas, é contra isso também que a gente luta. Lidar com essas dinâmicas de opressão faz com que a gente, em paradoxo, nos mantenha fortes e com mais certeza de que estamos no caminho certo. No caminho que vai nos levar à construção de algo em que a gente acredita.
A população negra tende a ser a mais afetada com a dificuldade de acesso à moradia. Como o MTST trabalha questões raciais dentro do movimento?
Quando a gente olha o perfil das pessoas que moram em ocupações, não só falando das ocupações do MTST, é nítido que estamos falando em sua grande maioria de pessoas pretas. Então o que o movimento tenta fazer – e isso passa muito pelo que a gente acredita –, é o poder popular. A luta organizada só faz sentido a partir dos princípios que a gente acredita nos levar à superação de todas as opressões, a partir da construção do poder popular. Nesse sentido, em sua grande maioria, quem está sendo oprimido são as pessoas pretas. Poder popular é necessariamente preto.
E a questão feminina? Como se busca dentro do contexto de poder popular se construir espaços que não reproduzam machismo? A população LGBTQIA+ tende a sofrer bastante com a falta de acesso à moradia, como o movimento acolhe esse grupo?
O movimento se preocupa muito com todas essas questões que historicamente levaram nossa população a sofrer. As chamadas minorias, que de minorias, só têm nome. Quando a gente olha o perfil dos sem-teto, são pessoas pretas, em grande parte mulheres, em grande parte LGBTs.
Uma coisa que é muito cara para a gente é tentar inserir nos nossos espaços de direção a presença dessas pessoas. Então, nos preocupamos com a questão racial, com a questão de gênero presente nos espaços de direção para que a gente não reproduza a lógica de ter outras pessoas contando a nossa história. Acho que para tentar superar questões como racismo, machismo, LGBTfobia, passando pela concepção de construção do poder popular, que para nós é muito cara, é preciso deixar essas pessoas serem protagonistas da própria história. Não coadjuvantes de suas vidas.Em 2020, o movimento ganhou repercussão nacional por uma de suas lideranças, Guilherme Boulos (PSOL), concorrer ao segundo turno na Prefeitura de São Paulo (SP). Como isso impactou o movimento?
Guilherme Boulos é sem dúvida uma das grandes lideranças da nossa geração. É alguém que consegue mobilizar a militância mais antiga, mas também ganhar o apoio da juventude. Ter alguém como ele, que é do nosso movimento, chegando ao segundo turno numa cidade conservadora como é o município de São Paulo, naquela disputa pela Prefeitura, traz sem dúvida muita visibilidade positiva para o movimento que sempre foi muito criminalizado.
Isso passa por gente ter mais apoio nas nossas vaquinhas on-line, mas também, e o que é mais fundamental para a gente, ter mais pessoas construindo junto conosco esse outro mundo que a gente entende ser possível. De solidariedade, de esperança e de pé no barro. Para nós, é muito caro o entendimento de que a cabeça só pensa onde os pés pisam.
O destaque nacional que a campanha municipal teve, com a candidatura do Boulos, fez com que outras pessoas que já simpatizavam com a nossa luta passassem também a construir ela no dia a dia. Sem dúvida, é muito importante para o movimento, que cresceu muito, mas não inchou. A gente cresceu e isso é fundamental para nossa luta.
A juventude do MTST, a Fogo no Pavio, se transformou em um movimento autônomo, mesmo permanecendo em um mesmo espectro político. Poderia falar um pouco sobre como se deu a formação desse grupo e sua desvinculação?
Antes, nós queríamos uma brigada de juventude dentro do MTST. Contudo, passamos a entender que poderíamos expandir essa luta, chegar em outros setores. Travar outras batalhas, que não nessa, seria um foco da brigada de Juventude do MTST. Desta forma, surgiu a ideia de transformar essa dissidência em um movimento autônomo, que é a Juventude De Fogo No Pavio.
É um processo que entendemos ser natural no processo de crescimento em que o nosso campo passa e a Fogo No Pavio tem ganhado destaque pela sua atuação combativa – uma herança do MTST –, mas também pela ocupação de espaços que são muito importantes para qualquer movimento de juventude, como a conquista de Diretórios Estudantis em diferentes universidades no país. Algo que, talvez, a gente não conseguiria ter perna para alcançar se ainda fôssemos uma brigada dentro de um movimento que luta territorialmente.
Foi, sem dúvida, uma escolha muito prática e muito acertada. Deixou, em nossa veia, as heranças do MTST de combatividade de que a luta se constrói na rua, mas também injetou na gente a perspectiva de que agora nós somos sim , movimento de juventude, e que precisamos também nos preocupar com outras pautas. Foi muito importante que isso se disseminou na cabeça dos nossos jovens de forma muito rápida e nós temos conseguido dar passos que são importantes numa conjuntura tão complicada.
Em meio ao aumento da insegurança alimentar e fome no país, o MTST tem aberto Cozinhas Solidárias nas periferias, levando comida gratuita e de qualidade para a população. Poderia explicar como se dá o funcionamento dessas cozinhas?
A ideia das cozinhas solidárias surgiu a partir do contexto que a gente vive. No momento em que o Brasil voltou ao mapa da fome e que o índice de desemprego aumentou muito. No momento em que o principal programa que durante anos foi destaque internacional no combate à miséria, que é o Bolsa Família, foi encerrado pelo governo federal, o MTST foi lá, através de uma moeda, que para a gente é muito cara, que é a solidariedade, e instalou no país inteiro 22 Cozinhas Solidárias, quase uma em todos os estados brasileiros.
De início, o MTST tinha como proposta a construção de 26 cozinhas, mas somente quatro ainda não estão em funcionamento. As demais funcionam de segunda a sexta. Os horários variam de acordo com a dinâmica do local onde a cozinha está instalada, mas de forma gratuita é distribuída refeição de qualidade para a população mais necessitada.
Conseguimos manter as cozinhas de pé através da doação de parceiros, temos um financiamento on-line, parceiros que sempre doam alimentos nas cozinhas, temos outros que vão lá e ajudam a preparar e a distribuir as refeições. É o povo organizado, fazendo o que o Governo não faz.