A volta dos que não foram
- 25 de novembro de 2021
Por Igor Nolasco
Com “Marighella” angariando bom público nas salas de cinema – o melhor do ano para um filme brasileiro – imprensa, setor audiovisual e público celebram a “volta do cinema brasileiro”. Este, no entanto, nunca deixou de estar entre nós, mesmo durante o pico da pandemia
Deu no New York Times. Ok, também não é pra tanto; mas saiu na Folha, no Globo, na IstoÉ e em mais uma porção de publicações da grande imprensa. A notícia é a seguinte: “Marighella”, filme dirigido por Wagner Moura sobre os últimos anos de vida do guerrilheiro homônimo, é o filme brasileiro mais visto nas salas de exibição desde o início da pandemia de COVID-19, em março de 2020. “100 mil pessoas em cinco dias no Brasil”, diz a matéria da Folha, publicada no dia 9 de novembro de 2021.
Notícia boa? Notícia ótima. Filme brasileiro fazendo receita, em período de desmonte a olhos vistos do audiovisual nacional pelas mãos do Governo Federal vigente. Sempre bom lembrar que não temos mais Ministério da Cultura, não se esqueçam disso. Fomos rebaixados para uma Secretaria, vinculada ao Ministério do Turismo. E o nosso Secretário da Cultura é o execrável ex-ator Mário Frias. Nem durante a pusilânime e fracassada tentativa de Michel Temer (lembram dele?) de extinguir o MinC durante sua efêmera passagem na presidência chegamos tão baixo. Ao que parece, Frias gosta de andar armado para botar medo em seus subordinados; um projetinho de jagunço de Jair Bolsonaro. Pequenos poderes, podres poderes. Enfim, o assunto aqui não é esse. Ou pelo menos, não deveria ser. Voltemos a “Marighella”.
O desempenho do longa de estreia de Wagner Moura na direção pode ser tido como admirável, sobretudo tendo como base as condições em que o filme já estava embebido quando chegou ao circuito de exibição nacional: rodado em 2018, ele já circulara pelo ciclo internacional de festivais ao longo do ano de 2019, coletando prêmios; teve sua estreia brasileira adiada mês após mês ainda antes da pandemia parar o funcionamento das salas de cinema, devido a uma série de problemas com a Agência Nacional do Cinema às quais Wagner Moura, sucessivas vezes, já se referiu como censura. Como se isso não fosse suficiente, sejamos francos (imagino que a maior parte das pessoas aqui já saiba disso): o filme vazou em abril. Repetindo como farsa o que havia ocorrido como tragédia com “Tropa de Elite” (2007), onde Moura estava presente como ator, “Marighella” caiu nas mãos da pirataria, e por conseguinte do público brasileiro, meses antes de estrear, de fato, no país. E ainda assim, com sua chegada tardia às telonas, os espectadores marcaram presença em peso.
Tenho lá minhas ressalvas com o filme propriamente dito, conforme já escrevi sobre, em maior detalhe, para outras publicações. Mas uma produção sobre Carlos Marighella, figura histórica incontornável que, para nós, da esquerda, possui papel de primeira importância no imaginário da luta brasileira, estreando em circuito, chegando mesmo aos cinemas multiplex de shopping center e ocupando um espaço (que lhe é de direito) em luta corpo a corpo com as megaproduções multimilionárias norte-americanas, não é pouca coisa. E o fato do público estar marcando presença substancialmente é mais notável ainda. Significa que muita gente quer ver “Marighella”, mesmo com o vazamento e o timing tardio da estreia brasileira. Isso é bom; tomem nota, isso é bom. Mas se me permitem fazer o papel de chato cheio de dedos que por vezes sou impelido a desempenhar nesta coluna que aqui me cabe, tomemos algum cuidado com o discurso que permeia toda essa situação.
Dizem alguns: “o cinema brasileiro voltou!”; “é o retorno do cinema brasileiro!”; mesmo o bom e velho “viva o cinema brasileiro!”, como se este estivesse, até então, adormecido desde março do ano passado. Vamos com calma, não é pra tanto (“com as grandes exceções, que são populares também”, como diria Rogério Sganzerla). Fala-se do sucesso do filme de Wagner Moura, com um entusiasmo legítimo e justo, lhe atribuindo um holofote absoluto que faz parecer como se nossos outros cineastas estivessem de braços cruzados e máquinas paradas. Não é bem assim.
Que nossa Agência Nacional do Cinema vem sendo gradualmente pilhada e desestruturada pelo Governo Federal desde 2019, e que tal pilhagem e desestruturação se intensificaram com a pandemia, quem está por dentro não duvida. Tivemos caos desenfreado, projetos que já haviam sido aprovados tendo o financiamento cortado, outros tantos que, por questões diversas, não puderam ser finalizados ou distribuídos da maneira inicialmente prevista – no que é relativo à distribuição, foi o caso, aliás, do próprio “Marighella”. Agora, ainda no primeiro semestre de 2020, uma série de festivais de cinema já começou a se reorganizar para a realização de edições on-line (conforme já comentamos nesta coluna, em mais de uma oportunidade), e por meio deles foi exibida uma safra de filmes que, por motivos de distribuição e programação, dificilmente chegariam a um público tão amplo por meio das tradicionais salas de cinema. Mesmo durante a pandemia propriamente dita (de acordo com o que também já notamos aqui), cinema e audiovisual nacionais continuaram (e continuam, dado que a pandemia ainda não acabou) produzindo, aos trancos e barrancos, e essas produções pandêmicas foram e vão chegando a nós conforme o tempo passa, seja por meio dos festivais on-line (e agora dos semi-presenciais ou presenciais), da televisão, de métodos alternativos de distribuição ou, novamente, com as salas de cinema abertas ao grande público.
“O cinema brasileiro” (como se fosse possível falar dele enquanto instituição, entidade única e sólida… mal somos uma indústria, ainda) passou – e passa – por perrengue e sufoco. Nunca parou. Lógico, de março de 2020 pra cá, talvez ele não tenha chegado, através das produções supracitadas, em público tão substancial quanto o “Marighella” vem chegando desde sua estreia em circuito. Os parâmetros para medir público são outros, também: receita, bilheteria soam como algo mais sólido do que cliques, acessos, visualizações. O dinheiro aparece de modo mais visível. Mas insisto (sou, por natureza, de uma teimosa insistência quando estou convencido de meu ponto de vista): tomemos cuidado com esse discurso de que o cinema brasileiro só “voltou” com o “Marighella” de Wagner Moura, ainda que o longa tenha seus méritos (entre os quais o de mobilizar espectadores mesmo em condições adversas), que ninguém tira dele.
Em suma: o cinema brasileiro não “voltou”, porque ele nunca “foi”. No máximo, a imprensa não o estava dando a devida atenção, não se atualizou quanto aos novos métodos de exibição e distribuição, por desconhecimento, inabilidade ou franca má vontade. Parte do público, durante este período, esteve na mesma página que nossos jornalistas especializados em cultura. Bem, tomara que, pelo menos, esse sucesso amplamente divulgado do “Marighella” ajude o cinema brasileiro a ocupar esse espaço nas salas de exibição, uma vez que a cota de tela para produções nacionais, fundamental e existente desde a década de 1930, a essa altura do campeonato, pelo visto, já foi para as cucuias. Vamos aguardar e conferir. Era isso o que eu tinha para dizer hoje.