Colagem de fotos com o logotipo da Cajueira – Foto: Adrian Albuquerque

Cajueira colhe frutos do jornalismo independente nos estados nordestinos

Veículo jornalístico baseado em mais de um estado da região Nordeste do Brasil conversou com a Badaró sobre sua produção e dificuldades

Por Carolina de Mendonça
Arte por Adrian Albuquerque

No início da década de 1960, o diretor de cinema Nelson Pereira dos Santos se deslocou do Rio de Janeiro, estado que se organizava o movimento do Cinema Novo, para o sertão nordestino, onde gravaria a adaptação do livro modernista Vidas Secas de Graciliano Ramos

Era preciso um cenário com cactos pontualmente espalhados na paisagem, solo bastante seco e rachado, sol escaldante centralizado em um céu sem nuvens e casas de barro sem condições básicas. No entanto, a equipe do longa encontrou uma paisagem bem diferente do “desertoapresentado na obra-prima do escritor alagoano.

Por conta de uma chuva que caiu pouco antes da chegada dos profissionais, a caatinga (do Tupi: mata branca) estava  verde, tornando impossível a gravação do filme naquele ambiente. Para compensar o deslocamento, foi filmado Mandacaru Vermelho (1961), com estrutura similar aos faroestes estadunidenses, e considerado um nordestem. A equipe, anos depois, retornou ao sertão e encontrou o local ideal para o longa-metragem Vidas Secas, lançado em 1963.

A anedota, não tão jocosa, do cineasta paulista, demonstra uma questão ainda problemática dos comunicadores e artistas, ao retratar o Nordeste – não compreendê-lo enquanto um espaço plural e complexo.

Segundo levantamento do Atlas da Notícia, os estados da região são os que mais sofrem com desertos de notícias – cidades inteiras sem veículos jornalísticos. O investimento em comunicação no país ainda se concentra muito na região Sudeste, especialmente nas capitais do Rio de Janeiro e São Paulo, que permanecem a reproduzir narrativas generalistas e antiquadas que reforçam a xenofobia contra o Nordeste.

Buscando combater os estereótipos e mostrar a abundância de narrativas presentes no território, em 25 de novembro de 2020, a Cajueira publica sua primeira edição, um manifesto. Mais que uma curadoria de conteúdos produzidos de forma independente nos nove estados, que brota quinzenalmente no e-mail dos inscritos, a newsletter deste veículo independente de jornalismo tem como proposta reinventar o Nordeste.

“Falam de nós como se a região fosse uma massa homogênea carregada de estigmas: a fome, a seca, a pobreza. Não existe um Nordeste, mas vários. Temos grandes cidades, paisagens urbanas, centros de tecnologia e universidades de referência”, explicam as representantes da Cajueira à Revista Badaró.

Frutos em meio ao deserto 

Escolhido como referência para o nome da newsletter, o cajueiro é uma árvore originária da região Nordeste, além de ser um símbolo de fartura e integração. A planta tem facilidade em criar raízes, ao encontrar solo propício e se multiplica sem fragmentar. O caule tortuoso entrelaça com outros galhos formando abraços. Sua copa se expande formando enorme sombra que viram um deleite e ajudam a lidar com o clima, majoritariamente quente, próximo a Linha do Equador.

Entre junho e dezembro, nasce em meio aos ramos dessa vegetação, belas e perfumadas flores que podem ser usadas para produção de chás. O fruto do cajueiro é a castanha de caju. Dura e oleaginosa, é rica em substâncias benéficas à saúde humana. Após preparada, pode ser consumida junto aos mais diversos alimentos ou até mesmo pura. Seu pseudofruto, o caju, é carnoso e com sabor marcante é matéria-prima de várias receitas, como sucos, doces, licores, bolos, moqueca, entre outras delícias.

A diversidade da planta se espalha pelos nove estados. Em Sergipe, o caju está no nome da capital – Aracaju, do Tupi, “cajueiro das araras”. Na cidade de Parnamirim, no Rio Grande do Norte, se encontra “Cajueiro de Pirangi”, o maior do mundo, ponto turístico na região. No Piauí, uma bebida feita a partir da fruta, Cajuína, é patrimônio cultural do estado e símbolo da capital, Teresina. A iguaria também dá título a uma música do baiano Caetano Veloso, onde conta sobre um encontro que teve com Heli da Rocha Nunes, o pai do poeta Torquato Neto. 

Com diversas raízes, diferentes formatos, perfumes, os cajueiros se espalham e se abraçam ao longo da região. As finalidades a partir de sua colheita também se mostram diversas em cada lugar que a árvore brota, mas sempre se entrelaçando. Da mesma forma como o jornalismo independente produzido nos estados nordestinos. 

Abraçando os mais diversos caules, experimentando e divulgando a diversidade da safra, a Cajueira foi fundada pelas jornalistas Joana Suarez, nascida e criada em Pernambuco, ainda que tenha  morado durante anos em Minas Gerais Mariana Ceci (Rio Grande do Norte), Mariama Correia (Pernambuco) e Nayara Felizardo (Ceará). Por ser um grupo totalmente feminino, as criadoras percebem um impacto na organização interna, também na forma de se apresentar às leitoras e aos leitores. “É muito simbólico que a primeira curadoria de conteúdos da mídia independente no Nordeste seja feita por mulheres nordestinas”, conta a a equipe.

Jornalismo feito no território para diversificar narrativas

É comum nos veículos de imprensa tradicionais ser reforçada a ideia de a população dos estados nordestinos fazerem parte de um “Brasil Profundo”, termo que demonstra a problemática da homogeneização das narrativas sobre o país gigantesco em território continental e diverso culturalmente.

Em pautas políticas, a xenofobia contra a região costuma se mostrar evidente, ainda associada ao Coronelismo – fenômeno político histórico do Brasil, que manteve latifundiários no poder, por meio de coerção amparada por títulos militares, e que se tornou uma expressão usada para definir longas permanências de determinadas figuras políticas, ou suas famílias. É repetido o discurso preconceituoso  de que votos são comprados, com por meio de programas como o extinto  Bolsa Família, e até mesmo com água potável.

“Pouco se critica os votos de outras regiões, que perpetuam o poder de grupos familiares e de partidos de direita, como é o caso de São Paulo, onde o PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira] se mantém há mais de 20 anos no poder. Não há voto comprado no resto do país?” questionam as jornalistas da Cajueira.

Ainda que, infelizmente, vitorioso nas últimas eleições, o candidato de discurso fascista foi derrotado nos nove estados da região. No entanto, até mesmo essa visão deve ser revista, para se entender a complexidade de um conjunto de unidades federativas que detém aproximadamente um terço da população brasileira“Não podemos nos iludir que a região Nordeste é um paraíso progressista. Como em qualquer lugar do Brasil, há pessoas que compactuam com o retrocesso.”. 

A Cajueira defende que, neste contexto, a mídia independente tem feito trabalho de ouvir as narrativas dos grupos que geralmente são desprezados pelos veículos tradicionais. “Essas histórias estão sendo contadas, em grande volume, e muito recorrentemente pelo jornalismo feito a partir dos territórios”, dizem as representantes da newsletter.

Um outro ponto para resgatar a história dos diferentes grupos que vivem no Nordeste é a partir do sotaque. Este que é  parte essencial da  identidade de um sujeito, pois é capaz de dizer de onde ele vem e por onde passou, como também de grupos mostrando as influências de diferentes povos na construção daquela forma de falar.

O veículo independente ressalta que “durante anos, houve um trabalho de pasteurização dos sotaques brasileiros, na tentativa de criar um falar neutro no jornalismo enquanto, nas novelas, personagens nordestinas e nordestinos são apresentados como caricaturas”, mostrando o quanto a forma de falar é estereotipada na mídia. Considerando-se até mesmo uma forma única para os nove estados. “Os podcasts feitos no Nordeste e por nordestinas e nordestinos, são um importante espaço contra a anulação dos nossos sotaques”, dizem as integrantes da Cajueira.

Durante o período de isolamento social, provocado pela pandemia da Covid-19, o consumo de mídias no meio digital teve um aumento significativo, em contraponto com a diminuição de relações com pares. Com isso, foi percebido uma situação problemática, especialmente em crianças. Algumas pessoas estavam perdendo o sotaque. Pensando em tais problemáticas, o grupo na quarta edição questiona o leitor sobre “Qual Sotaque Toca Nos Teus Ouvidos?”No texto trazem indicações de podcasts produzidos nos estados do Nordeste. Uma colheita diversa e saborosa.

Mas não apenas frutos do Nordeste a Cajueira detém! Em meados de 2021 a curadoria deu uma passada na região vizinha, que também sofre com um imenso deserto de notícias(aproximadamente 71,8% da região). Durante a pandemia, estados do Norte têm vivido situações de calamidade, como o Amapá, que no final de 2020, teve parte do seu território, incluindo acapital Macapá, sem energia elétrica, Acre, que parte de sua área ficou imundada e o Amazonas, vítima de um  colapso sanitário, envolvendo falta de oxigênio e até mesmo crise de segurança pública após assassinato de um traficante.

As situações citadas tiveram pouco espaço na mídia tradicional, precisando competir com pautas externas, como as eleições americanas A falta de cobertura das tragédias ocorridas na região que detém a maior parte da extensão territorial brasileira demonstra a problemática do monopólio midiático também é de caráter humanitário. Sendo urgente o investimento em iniciativas dentro dos territórios que falam com e para as populações, além da descentralização para ampliar as narrativas sobre o Brasil. Afinal, o que ocorre fora do Sudeste, também é pauta nacional.

Na imagem, a colagem de um deserto em meio a páginas de jornal.
O conceito de “desertos de notícias” definem municípios brasileiros onde há falta de veículos de jornalismo próprios (Arte: Adrian Albuquerque)

Para fixar as raízes e importar as colheitas

O alto investimento é algo que as curadoras da newsletter trazem como uma questão importante para concentração de oportunidade para jornalistas no eixo São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Com isso, muitas vezes, profissionais deixam seus territórios pela falta de mercado de trabalho local, e priorizam empregos nessas cidades..

As representantes da Cajueira percebem que a internet aproxima algumas fronteiras, mas indagam que “mesmo na pandemia, com muitos eventos de jornalismo acontecendo em formato on-line, o que poderia ter facilitado uma maior participação de pessoas de outras regiões, os debates continuaram sendo dominados por sudestinos” 

“É preciso descentralizar, investir no jornalismo local de qualidade, capaz de reflorestar os vazios noticiosos.”

O grupo foi contemplado com um edital de financiamento do Google News Initiative e está preparando um projeto de acessibilidade junto a outros oito grupos de jornalismo independente da região. São eles: Agência Eco Nordeste (CE), Saiba Mais (RN), Marco Zero (PE), Diadorim (PE), Agência Retruco (PE), Mídia Caeté (AL), Olhos Jornalismo (AL) e Revista Afirmativa (BA).

A Cajueira também abriu uma campanha de financiamento recorrente chamada “Plantio”, com valor mínimo de R$5, mas sendo possível contribuir com outros valores. Há uma pretensão de atingir um valor de R$1,2 mil, e lançar o “CajuZap”, um novo produto que trará a curadoria da Cajueira em formato de áudio. Há também a possibilidade de contribuição através do PIX [email protected] Para ajudar na descentralização da mídia, é possível se tornar uma cajuzinha ou um cajuzinho, como as fundadoras do projeto chamam carinhosamente os leitores, os quais elas confessam sentir uma vontade de dar um “xero” enorme em cada um.

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