Classificar Hamas como terrorista é ignorar contexto de resistência a um massacre

Mídia hegemônica costuma tratar o grupo palestino como terrorista, mas omite causas que levam à violência política

Por Norberto Liberator
Arte: Marina Duarte

Em publicações a respeito da Palestina, os veículos de mídia hegemônica do Brasil — como Organizações Globo, Folha de S. Paulo, Rede Record, Grupo Abril e afins — costumam classificar o grupo militante Hamas como “extremista”, seguindo a tendência dos Estados Unidos e da União Europeia, que institucionalmente consideram o movimento como “organização terrorista”.

No entanto, é preciso questionar o uso de tais termos e o apelo ideológico que eles carregam. O mesmo adjetivo utilizado para definir o Hamas não é sequer cogitado quando se trata do Likud, ao qual faz parte o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. O Likud é um partido que, além de agir com violência contra civis na prática, possui uma ideologia de extrema direita, supremacista, que desumaniza a população árabe e não considera a possibilidade de um Estado palestino na região.

Mesmo quando se reconhece os crimes de guerra praticados pelo Estado israelense, o discurso de que “Israel precisa se defender” do que é chamado de “terrorismo do Hamas” costuma ser presente, como é o caso de um artigo de opinião do jornalista Guga Chacra, correspondente da Globo em Nova York e colunista do Estado de S. Paulo, segundo o qual “o alvo tem de ser o terror do Hamas” e “qualquer país” faria o mesmo que Israel.

É amplamente sabido que o Conselho de Segurança da ONU e as potências ocidentais não dão aos bombardeios contra residências de civis, hospitais e escolas em Gaza a mesma importância que dão a mísseis lançados pelo Hamas. Mas para além disto, devemos saber o que é este grupo militante, seus objetivos e suas ações, para que possamos compreender o motivo de seus métodos serem, sim, legítimos.

O que é e o que defende o Hamas?

O Movimento de Resistência Islâmica, cuja sigla Hamas forma a palavra “fervor” em árabe, é um grupo político formado em 1987, no contexto da primeira Intifada, ou seja, a rebelião com pedras contra a ocupação israelense. De orientação muçulmana sunita, seu objetivo é a implementação de uma república islâmica na Palestina. Inicialmente, suas ações eram apenas militares. Em 2006, o Hamas disputou as eleições parlamentares como partido político e venceu, alçando Ismail Haniyeh a primeiro-ministro. Ele seria demitido um ano depois do cargo pelo presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, que pertence ao rival Fatah.

A disputa entre Hamas e Fatah existe desde o início do movimento. O Fatah (sigla reversa de “Movimento pela Libertação Nacional da Palestina”) é o principal componente da Organização pela Libertação da Palestina (OLP, na sigla em português), coligação suprapartidária considerada representante oficial dos interesses palestinos por entidades como a Liga Árabe e a ONU. Enquanto o Hamas defende um Estado religioso, o Fatah busca a criação de uma república laica, de inspiração socialista.

O Hamas lançou sua carta de fundação em 1988; em 2017, foi emitido um novo estatuto, no qual o grupo passou a aceitar as fronteiras estabelecidas pela ONU em 1967, embora continue considerando o Estado de Israel como ilegítimo. A carta de princípios de 2017 demonstra uma busca de diálogo por parte do movimento, que passou a se posicionar de forma clara como antissionista e não antijudeu — utilizo este termo porque “antissemita” não faz sentido no contexto de um grupo composto por árabes, um povo semita.

A partir de uma análise fria, no estatuto original, do final da década de 1980, o Hamas deixava soltas algumas brechas para que fosse considerado “extremista”. No entanto, é necessário compreender qual o contexto em que ele foi escrito. A primeira Intifada, no final de 1987, foi um levante espontâneo dos palestinos que se expressou como um grito de “não aguento mais”. Com as armas possíveis — paus e pedras —, os manifestantes enfrentaram um dos exércitos mais poderosos do mundo. A revolta se iniciou depois de um caminhão militar atropelar um carro com civis palestinos no campo de refugiados de Jabalya, o que resultou em quatro mortes.

As ações diretas se seguiram e a violência de Israel ficou cada vez maior. No primeiro ano da Intifada, cerca de 300 palestinos foram mortos, além de aproximadamente 20 mil feridos e 5,5 mil detidos, de acordo com dados da Agência das Nações Unidas de Assistência a Refugiados Palestinos (Unrwa). De acordo com estimativa da ONG Save the Children, de 23,6 mil a 29 mil crianças — um terço delas, menores de 10 anos — passaram a depender de tratamentos médicos devido aos ferimentos, durante os dois primeiros anos.

Foi em meio a estes dados que o movimento publicou sua carta de fundação. O termo “judeu”, no singular ou plural, aparece 12 vezes no estatuto original, em algumas delas acompanhado de termos nada elogiosos. Logo na introdução, fala-se em “luta contra os judeus”; ainda assim, não há negacionismo da tragédia judaica, já que o termo “nazista” é utilizado em quatro trechos, como analogia ao tratamento dado por Israel aos palestinos.

À luz da história, a partir dos números aqui apontados, é possível compreender que o termo “judeu”, quando aparece de forma generalista naquele texto, tem a mesma conotação de quando movimentos negros ou indígenas se referem ao “homem branco”, ou mesmo quando autores anticolonialistas se referem ao “europeu”, ou seja, na forma de um arquétipo baseado em fatos históricos, não exatamente como um clamor de ódio por toda aquela categoria de seres humanos. No artigo 31, por exemplo, afirma-se que “sob as asas do Islã, os seguidores das três religiões” de maior presença na Palestina — ou seja, Islamismo, Cristianismo e Judaísmo — podem “coexistir em segurança”.

Ainda assim, o amadurecimento político do Hamas fica evidente no cuidado com que a carta de 2017 se refere aos judeus. Nela, a palavra “judeu” (seja no singular ou plural) aparece apenas seis vezes, nos artigos 16 e 17. No primeiro deles, o Hamas “afirma que este conflito é contra o projeto sionista, não contra os judeus por sua religião; o Hamas não luta contra judeus por serem judeus, mas sim trava uma luta contra os sionistas que ocupam a Palestina”. Já no segundo, o movimento afirma que “rejeita a perseguição de qualquer ser humano ou o enfraquecimento de seus direitos por motivos nacionalistas, religiosos ou sectários”.

Arte: Marina Duarte

Onde está o extremismo do Hamas?

Diante de uma pesquisa sobre o que o Hamas defende como projeto de nação, sobretudo após a carta de princípios de 2017, não é possível dizer que haja posições “extremistas”. Em relação a suas ações, é necessário analisar quais são os dois lados no que se chama de “conflito”. Israel, além de ocupar militarmente territórios palestinos, impede que aquela população tenha suas próprias Forças Armadas. Movimentos como o Hamas agem como exército de um povo que não tem direito a um.

Quando se fala em “foguetes do Hamas”, a referência não é a ataques aleatórios com objetivo de levar o “terror”, mas a ações de represália contra a violência do Estado sionista. Os eventos que resultaram no massacre mais recente de Israel contra a Faixa de Gaza, por exemplo, se iniciaram com atos de violência da polícia israelense contra civis palestinos na mesquita de Al-Aqsa, no fim do Ramadã. Naquela ocasião, mais de 300 pessoas ficaram feridas e mais de 200 foram hospitalizadas, causando ainda mais superlotação de leitos, que já estavam ocupados por pacientes com covid-19 — vale lembrar que Israel negligencia a vacinação em massa à população palestina que vive sob sua ocupação.

De acordo com o balanço inicial divulgado pelo Instituto Brasil-Palestina, a mais recente ofensiva de Israel contra Gaza deixou 232 civis palestinos mortos, incluindo 65 crianças. Os ataques com foguetes feriram mais de 1,9 mil civis, 90 deles em estado extremamente grave, e entre eles 560 crianças. Cerca de 75 mil pessoas ficaram desalojadas, segundo a Unrwa, que ainda informou que 28,7 mil civis buscaram refúgio em escolas da entidade. Três mesquitas foram demolidas e outras 40, além de uma igreja, foram danificadas. Ainda assim, as Forças de Defesa de Israel não são chamadas de “extremistas” ou “terroristas”.

A conclusão é que os critérios utilizados para classificar o Hamas como “organização terrorista” ou “grupo extremista” partem de conceitos puramente racistas e islamofóbicos, além de uma necessidade de alinhamento com a postura da União Europeia e dos Estados Unidos. Enquanto o Jornal Nacional chama o Hamas de “extremista”, o próprio Itamaraty o considera um partido político. O Estado brasileiro  nunca considerou o grupo como terrorista, mesmo após a retórica olavista que a diplomacia nacional passou a ter sob a gestão de Jair Bolsonaro na presidência da República.

Referências

CHACRA, Guga. Alvo tem de ser terror do Hamas, não crianças palestinas. O Globo, Nova York, 15 maio 2021. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/guga-chacra/post/alvo-tem-de-ser-terror-do-hamas-nao-criancas-palestinas.html. Acesso em: 15 de maio de 2021.

HAMAS. Estatuto do Hamas. Gaza, 2017. Disponível em: https://www.middleeasteye.net/news/hamas-2017-document-full. Acesso em: 15 de maio de 2021.

INSTITUTO BRASIL-PALESTINA. Balanço Preliminar de vítimas e perdas da agressão israelense em Gaza. São Paulo, 2021. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1-JSnwaHoFzx1tklbXlLPjuoqDle6ZhRO/view. Acesso em: 15 de maio de 2021.

Norberto Liberator

Jornalista, ilustrador e quadrinista. Interessado em política, meio ambiente, artes e esportes.

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