Heróica e imperativa
Por Igor Nolasco
Reflexões sobre a maneira com a qual o cinema brasileiro se aproxima, ainda timidamente, de tentativas de retratar figuras que fogem da história oficial forjada
Escrevo numa manhã de segunda-feira, após tomar o café enquanto lia os jornais. Acompanho com um quê de experiência antropológica a imprensa oficial, dos grandes veículos e dos analistas políticos ponderados e esclarecidos, descobrir, a essa altura do campeonato, a inaptidão e o golpismo de Jair Bolsonaro, o fracasso das políticas econômicas pastoreadas por Paulo Guedes (cujos desdobramentos já se manifestam agudamente no bolso do brasileiro) e o cinismo de movimentos como o Vem Pra Rua e o Movimento Brasil Livre, agentes vocais pelo golpe parlamentar de 2016 e cabos eleitorais do bolsonarismo em 2018, que agora tentam descolar suas imagens da figura brancaleônica-miliciana-neopentecostal do presidente, mal visto pela maioria maciça da população, ainda que com uma base de apoio inexplicavelmente inabalável que segue flutuando entre os 20 e 25% do povo.
Subitamente, entre uma e outra coluna, minha leitura é interrompida por um pensamento que irrompe súbito e inesperado, como que entrando pela janela: por onde anda o Roberto Alvim?
É, o Roberto Alvim, dramaturgo e diretor de teatro, lembra dele? Bem, talvez o nome não lhe evoque a figura, até porque, enquanto artista, trata-se de um sujeito minúsculo. Ainda assim, na condição de Secretário da Cultura do governo Bolsonaro, protagonizou, em janeiro de 2020 (e como parece longínquo o janeiro de 2020!), uma cena que lhe deu visibilidade no país inteiro, mas uma visibilidade nada positiva: afinal, apareceu em um vídeo oficial, com cenário e enquadramento evocando fotografias conhecidas do escritório do Ministro da Propaganda Nazista Joseph Goebbels, citando-o indiretamente em um discurso enfadonho e kitsch sobre as perspectivas que tinha para a arte brasileira durante sua gestão na Secretaria. Como se isso já não fosse dar bandeira o suficiente, e como essa gente tem, num geral, a sutileza de um mamute passeando por uma loja de cristais, a fala de Alvim no vídeo ainda tem como pano de fundo a música de Richard Wagner, compositor notoriamente associado ao nazismo, pelo qual Adolf Hitler em pessoa expressava aberta admiração.
Esse episódio foi responsável pela demissão de Alvim, e, em tudo, me lembra particularmente uma sequência de “Garotas do ABC” (2003), um dos últimos filmes – e gravemente subestimado – do cineasta Carlos Reichenbach. Falo, em específico, sobre o momento no qual Salesiano, mentor pseudo intelectual de um grupo de motoqueiros neonazistas do ABC paulista, avança numa estrada escura com seu carro enquanto escuta, no rádio, a Cavalgada das Valquírias wagneriana, tendo seu veículo amparado pelas motocicletas de seus cupinchas, que alinham-se ao carro como que mimetizando uma esquadrilha de vikings de baixo orçamento. Genial, genial o Carlão Reichenbach. Adoro o “Garotas do ABC”. Em algumas conversas que tive com o crítico Filipe Furtado, ele mencionou que, à época da preparação do roteiro do filme, o cineasta estava acompanhando as colunas de Olavo de Carvalho, à época jornalista com espaço sólido na imprensa oficial, enquanto parte da pesquisa para desenvolver o núcleo dos personagens neonazistas. Tem gente que realmente consegue enxergar tudo um passo à frente. Como faz falta um Carlos Reichenbach no novíssimo cinema brasileiro.
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Bem, já estou me excedendo nisso que deveria ser uma breve introdução para o meu ponto principal.
O que eu realmente queria dizer é que, enquanto eu lembrava da desastrosa passagem do minúsculo Roberto Alvim pela gestão oficial da cultura, me peguei pensando justamente no trecho em que este citava, indiretamente (porém disfarçando bem pouco) Goebbels, ao sentenciar que, doravante, a arte nacional seria “heróica” e “imperativa”. Sabemos bem que tipo de porcaria ele estava, nas entrelinhas, citando como modelo, mas não nomearemos esses filmes em nossa breve coluna, para não dar mais visibilidade a tais obras. Basta dizer que tratam-se de produções francamente revisionistas, em sua maioria documentários com linguagem e pesquisa típicos do pior do que o sensacionalismo da televisão à cabo tem a oferecer, feitos para serem veiculados na internet e espalhar francamente a desinformação. Isso sem contar com os filmes feitos para exaltar certos ideólogos do bestialismo engravatado que tomou o país de assalto de 2016 em diante.
Mesmo que nos apeguemos ao vocabulário nefasto utilizado por Alvim em seu discurso, qualquer um com o mínimo de sensibilidade artística sabe que uma arte brasileira “heróica”, verdadeiramente heróica, não precisa ser assim. Melhor: não deve ser assim. E, na verdade, se tem uma coisa que o cinema brasileiro entende, é de tentativas de se produzir “arte heróica”. Faz isso basicamente desde que a produção fílmica nacional começa a se estruturar.
Voltando um pouco no tempo, é preciso pensar o que seria uma arte brasileira “heróica” – me sinto sujo utilizando os mesmos termos que Alvim e, portanto, Goebbels, mas prometo, prezado leitor, que o desfecho disso não será tão execrável quanto o discurso do ex-Secretário da Cultura. Se pensarmos em “heroísmo brasileiro” enquanto um conceito mais abstrato, é preciso voltar aos primórdios da República, no final do século XIX, para compreendê-lo. A história oficial brasileira havia sido, até então, cunhada majoritariamente a partir de uma perspectiva lusitana, sobretudo com participação ativa de Pedro II, derradeiro líder monárquico do país. Com a instauração do que era vendido como um regime legitimamente brasileiro (com todos os problemas que isso implica), era preciso revisitar episódios da história nacional para, a partir deles, cunhar uma identidade que pudesse ser verdadeiramente nossa. Foi a partir daí, como é sabido, que a Inconfidência Mineira foi resgatada dos empoeirados Atos da Devassa, e a figura de Tiradentes, alçada ao posto de mártir e herói primordial brasileiro.
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Nosso cinema adaptou direta e indiretamente os eventos relativos à Inconfidência uma série de vezes, com destaque para a superprodução “Inconfidência Mineira” (1948), fruto da ambição da produtora e cineasta Carmen Santos (e hoje um filme perdido), o “Rebelião em Vila Rica” (1958) dos irmãos Santos Pereira, e sobretudo o “Os Inconfidentes” (1972) de Joaquim Pedro de Andrade – longa produzido a partir de um pedido da ditadura militar então vigente para que se fossem rodadas mais obras que resgatassem a história brasileira ou suas obras clássicas, mas que, com sutileza e fidelidade histórica, imprime na prisão, no interrogatório, na tortura e no assassinato de Tiradentes e seus co-conspiradores ares que se relacionavam com a repressão política própria daquele período.Outros episódios, hoje tidos como marcos da história oficial brasileira e representantes de seu componente “heróico”, também já foram adaptados ao cinema. É o caso da independência do Brasil, no “Independência ou Morte” (1972) de Carlos Coimbra, ou das campanhas dos (execráveis) bandeirantes em fitas como “O Caçador de Esmeraldas” (1979), de Oswaldo de Oliveira. Em seus melhores momentos, essas obras que se relacionam com a fundação e o desenvolvimento do país não se dobram ao discurso ufanista e oficialesco – é o caso do próprio “O Caçador de Esmeraldas”, que está bem mais próximo de um “Aguirre” (1972), de Werner Herzog, do que dos livros de história que retratam os então chamados “paulistas” enquanto destemidos desbravadores do sertão; ou, ainda, o próprio filme de Joaquim Pedro sobre a Inconfidência Mineira.
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Quando penso nas palavras peçonhentas do vídeo de Alvim, no entanto, não é sobre essas obras que reflito. Formulo, na verdade, uma pergunta: onde estão os filmes sobre os heróis brasileiros excluídos da historiografia “oficial” e positivista herdada da República Velha? Os heróis marginalizados, segregados, excluídos, que se levantaram contra o Império, a República Velha, Vargas, a ditadura militar sessentista? Por que só em 2019 uma cinebiografia de Carlos Marighella conseguiu ser produzida? E, frisemos, ela ainda não pôde estrear comercialmente no Brasil. Temos hoje uma cinebiografia de Olga Benário (2004) – o que é ótimo – mas o cinema brasileiro ainda não teve peito para pôr nas telas um longa de ficção que retrate vida e obra de Luiz Carlos Prestes, por exemplo. Ao menos, temos o bom documentário “O Velho” (1997).
Carlos Diegues, para além de imortalizar em nossa cinematografia a história de Xica da Silva (1976), ex-escravizada tornada companheira do tratador João Fernandes, rodou alguns longas sobre o quilombo dos Palmares – “Ganga Zumba” (1963), primeiro filme comercial brasileiro de elenco majoritariamente negro, e “Quilombo” (1984), uma superprodução à época. Mas, para a magnitude da história de Palmares, infelizmente associada quase sempre a sua trágica destruição, é flagrante que existam tão poucas instâncias de representações da comunidade em nosso cinema.
Mesmo se formos focar em seu fim; um dos últimos capítulos de “Musa Praguejadora”, biografia do poeta Gregório de Matos escrita em riqueza de detalhes por Ana Miranda, descreve minuciosamente a campanha que empreendeu o massacre no quilombo, sua completa destruição e a morte e decapitação de Zumbi. Extremamente brutais e dolorosas, há, nessas páginas de Ana Miranda, todo um potencial cinematográfico que, em meu conhecimento, ainda não foi aproveitado.
Acredito que ainda esteja em cartaz em algumas salas de cinema do país – e sim, elas já estão reabertas e funcionando, apesar dos apesares – o longa “Doutor Gama” (2021), sobre a trajetória de vida de uma figura histórica brasileira de primeira importância, o abolicionista Luiz Gama. Para os que preferem não se arriscar a uma ida aos cinemas no presente momento – afinal, ainda estamos em uma pandemia – creio que o longa tenha estreado simultaneamente na plataforma Globoplay, e esteja disponível para seus assinantes sem a necessidade do pagamento de uma taxa adicional. Foi em “Doutor Gama” que pensei, originalmente, ao refletir sobre como tentar ressignificar o conceito de “arte brasileira heróica”. Confesso que ainda não assisti ao filme, mas acredito que valha a pena escrever sobre ele aqui, a partir do momento em que Jeferson De, seu diretor, é um cineasta bem intencionado com preocupações sócio-raciais que permeiam toda a sua obra, e, sobretudo, do fato de que apenas em 2021 uma cinebiografia de Luiz Gama chegou às telas. Se não fosse esse esforço de Jeferson De, quantos anos mais seriam necessários para que isso acontecesse?
Venho tentando arranjar tempo e energia para assistir a “Doutor Gama” na Globoplay, mas está difícil; não ando, mesmo, vendo muitos filmes. Quando eventualmente conseguir assisti-lo, o farei sob o mesmo olhar crítico que direciono a qualquer obra, fazendo o possível para manter certo distanciamento e não louvar o longa de antemão pelo mero fato dele retratar uma figura importante que foi maciçamente negligenciada pelos mais de cem anos do cinema brasileiro. Mas por fazê-lo, inevitavelmente, a produção já ganha, de mim, alguma simpatia – se for para a arte brasileira ser “heróica” (céus, como fico com a boca amarga só de usar, mesmo que entre aspas, a expressão destacada por Alvim), que seja para abordar figuras como Marighella, Olga, Zumbi e Luiz Gama.