Elize e Pamella: diferentes partes de um mesmo machismo
- 21 de julho de 2021
O relacionamento abusivo perpassa dois episódios brutais de violência
Por Tainá Jara
Colagem por Guilherme Correia
Os desfechos caminham para rumos bem diferentes, mas os enredo das histórias de Elize Matsunaga e Pamella Holanda parecem compartilhar de uma narrativa comum a vários relacionamentos: o abuso. Alívio seria se a ficção nesses casos não se limitasse apenas ao uso de recursos literários nas reportagens policiais, mas violência psicológica, patrimonial e física fazem parte da rotina de muitas mulheres.
Só em 2020, o Brasil teve 105 mil denúncias de violência contra mulher registradas pelo Ligue 180 e o Disque 100. De acordo com o governo Federal, o número é considerado maior do que em anos anteriores, aprofundando-se na pandemia, quando o tempo em casa aumentou. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o quinto em feminicídio entre 83 países.
Holofotes, no entanto, não alcançam tantos casos como o de Elize e Pamella. A grande repercussão na mídia é mais um ponto em comum entre as trajetórias. O que certamente influencia no âmbito jurídico, em decisões relativas ao julgamento dos diferentes crimes e aplicação de penas.
É necessário considerar particularidades para entender o fio condutor dessas duas tramas e buscar respostas para episódios de violência tão brutal, ambos, independentemente da posição das protagonistas, ancorados no machismo perpetuado pela sociedade patriarcal.
Dois aspectos são cruciais para diferenciar os casos: de Elize, temos basicamente o relato pessoal, apesar das provas colhidas durante a investigação, ela é a única testemunha do crime que cometeu; no caso de Pamella, temos vídeos da violência física explícita sofrida por ela, inclusive na presença de testemunhas.
A história de Elize virou até documentário da Netflix. Em 2012, ela confessou ter matado o marido com um tiro e o esquartejado na tentativa de se livrar do corpo. Apesar dos requintes de crueldade, a repercussão se deu pela vítima, Marcos Kitano Matsunaga, presidente da empresa alimentícia Yoki.
Quase 10 anos depois do caso, ela amplifica a sua versão do fato. Condenada a quase 20 anos de prisão, Elize cumpre pena no regime semiaberto.
De infância humilde e abusada pelo padrasto, ela deixou o interior do Paraná ainda muito jovem. Para viver em São Paulo, precisou se prostituir enquanto cursava Enfermagem. Depois de anos vivendo uma relação extraconjugal com Elize, Marcos largou mulher e filho e “promoveu” a amante a esposa.
O que parecia ser a história de Cinderela, referência nitidamente patriarcal e utilizada por amigos de Marcos em depoimentos, no entanto, escondia uma relação excêntrica, marcada por traição, prostituição, dependência econômica, caça e armas de fogo. A romantização das relações, inclusive, continua sendo forte elemento de sustentação de casamentos opressivos, especialmente para as mulheres.
Conforme Elize, a noite do crime se diferenciou apenas pelo desfecho, mas as brigas já eram rotinas entre o casal. “Sua puta” e “Eu te tirei do lixo” foram algumas das frases que ela ouviu ao confrontar o marido sobre uma traição.
O depoimento do próprio reverendo do casal confirma que o empresário chegou a cogitar interná-la em uma clínica psiquiátrica, quando ele se recusou a aceitar um pedido de divórcio feito pela esposa. Ela havia descoberto uma relação extraconjugal, enquanto o casal tentava engravidar. A dinâmica da relação levou ao destino trágico.
Os elementos de violência psicológica relatados por Elize foram ressaltados pela defesa e utilizados para amenizar sua pena. Apesar de bem-sucedida, a estratégia de humanizar o réu e até revitimizá-lo, comumente adotada em casos de feminicídio, não renderam a Elize a mesma empatia expressa quando os autores são homens. Um exemplo é o caso do goleiro Bruno, condenado pelo assassinato de Eliza Samúdio de forma igualmente cruel. Mesmo no semiaberto, ele conseguiu retomar a carreira como atleta.
Entretanto, é importante ressaltar que a evidente condição de opressão das mulheres na sociedade corrobora com os relatos de Elize sobre o relacionamento com o empresário e pode ter influenciado parte do júri popular.
Nos últimos dez anos, houve uma transformação em relação ao entendimento da sociedade frente a casos de violência contra mulher, apesar da impunidade ainda marcar muitos crimes. O caso envolvendo Iverson Araújo, o DJ Ivis, e sua ex-mulher, Pamella Holanda, reflete em parte essa mudança de perspectiva.
Pamella aguentou agressões durante muito tempo, na presença de testemunhas que se calaram e, até mesmo, na presença da filha recém-nascida. Os vídeos circularam nas redes sociais no começo da semana passada e chocaram, mas também relembraram a velha prática de tornar ídolo quem na verdade é criminoso.
A página oficial de Ivis nas redes sociais chegou a ganhar 200 mil seguidores após a divulgação das imagens de agressão. Ele utilizou o canal para se defender das acusações. Teve quem saiu em sua defesa explicitamente.
Divulgadas na conta de Instagram da vítima, meses depois de terem ocorrido, as cenas de socos, empurrões, puxões de cabelo, acompanhadas de tentativas frustradas de defesa, chocam. Precisou ser assim para que a disputa de narrativas de fato ocorresse.
Mesmo com mais seguidores, o cantor foi atropelado pelas manifestações contrárias a sua atitude nas redes. A frase “Em briga de marido e mulher, a gente salva a mulher” reafirmou que o privado é, sim, público em casos de violência. O apelo é um dos lemas das feministas pelo menos desde os anos 70 e, desta vez, se concretizaram com a prisão de Ivis. Vitoriosas, ao menos momentaneamente.
De lados supostamente opostos. Vítima e vilã. Os casos de Elize e Pamella demonstram as diferentes formas pelas quais o machismo pode agir na sociedade. Ele se camufla, inverte papéis, se alia a outros valores, mas resiste e precisa ser confrontado. As facetas da destruição são inúmeras e estão longe de afetar apenas as mulheres.