Acendendo velas para um diabo vermelho [Badasportes 2]

Politizado, encrenqueiro e incontestável em campo, Éric Cantona completa 55 anos nesta segunda-feira; ídolo do Manchester United se imortalizou por voadora em torcedor fascista

Por Gabriel Neri e Norberto Liberator

Em entrevista à BBC, o camisa 7 colocou a voadora como o máximo momento de sua carreira. “Foi quando dei o chute de kung fu em um hooligan porque este tipo de gente não tem nada o que fazer em um jogo. Acredito que é um sonho, para alguns, dar um chute neste tipo de gente. Assim, eu fiz por essas pessoas, para que elas ficassem felizes”.

Éric nasceu em uma família da classe trabalhadora na cidade de Marselha, ao sul da França. Seus pais, Albert Cantona e Éléonore Raurich, eram enfermeiro e costureira, respectivamente. Seu avô materno engrossou as fileiras antifascistas na Guerra Civil Espanhola, lutando ao lado das Brigadas Internacionais, contra as falanges do ditador Francisco Franco.

A história no futebol começa no Olympiques Caillollais e perpassa na Associação Juvenil de Auxerre, onde estreou profissionalmente. Antes da primeira consagração no Olympique de Marseille, passou pelo Martigues. Mesmo mostrando talento para o futebol, não teve muito sucesso em solo francês. Assim, em 1992, foi para o Leeds United, da Inglaterra. 

Na sua primeira temporada em solo inglês, jogou um ótimo futebol, que rendeu a ida para o Manchester United em 1993 a pedido de Sir Alex Ferguson, o maior treinador da história de Old Trafford. No United foi onde viveu seu auge com 185 jogos e 82 gols. O atacante da camisa 7 chegou a ser chamado de The King (o Rei) pela torcida. Ao todo, saiu campeão 14 vezes na carreira. Pelo Olympique de Marseille foram dois Campeonatos Franceses e uma Copa da França; no Leeds conquistou um Campeonato Inglês e uma Supercopa da Inglaterra; no Manchester, quatro Ligas, duas Copas da Inglaterra e duas Supercopas.

Se George Best fez da camisa 7 do United um manto místico que encarna a alcunha de “diabo vermelho” dada ao clube, Cantona levou o espírito infernal a um novo patamar. Encrenqueiro, polêmico e incontestável em campo. Mas as maldições vieram junto. Como seu precursor, Éric nunca disputou uma Copa do Mundo. 

Se em 1982, o treinador Billy Bingham não quis levar o maior jogador da história da Irlanda do Norte ao Mundial da Espanha, o francês amargou a derrota de virada por 2 a 1 (um gol dele e dois de Kostadinov), que classificou a Bulgária para a Copa de 1994 contra uma França que jogava pelo empate. E quatro anos depois, já muito por suas confusões em campo, ficou de fora do selecionado de Aimé Jacquet, que seria campeão em casa – o que influenciou sua aposentadoria precoce aos 30 anos, em 1997.

Antes de encerrar a carreira no futebol, ele começou a vida como ator. A primeira aparição foi no filme ‘A Alegria está em campo’. Outros trabalhos se destacam como ‘A fortuna de viver’, ‘Os profissionais do crime’ e coproduziu ‘Buscando Éric’ interpretando a si mesmo, na trama para ajudar um carteiro a refazer sua vida. Por conta disso, em 2009, fez parte da Seleção Oficial do Festival de Cannes.

Na política, nunca escondeu seu lado pautado pelas lutas sociais e anticapitalismo. Numa entrevista ao jornal britânico The Guardian, chamou de terrorismo as ações das “grandes democracias”. “As grandes democracias vão para onde há milhares de anos de tradições e culturas, querendo que vivam conforme desejarem. Para mim, é um tipo de terrorismo, Um terrorismo econômico. E as grandes democracias são, de certo modo, ditaduras, porque querem impor sua visão”, disse.

Em 2010, Cantona defendeu a revolução contra os bancos, pedindo que quem protestava contra a crise retirasse o dinheiro deles. Dois anos depois, publicou uma carta aberta no jornal Libération pedindo 500 assinaturas, que supostamente seriam para ser candidato à presidência. Mas não passou de uma jogada de marketing em prol da construção de moradias populares.

A política brasileira não foi esquecida pelo The King. Nas eleições de 2018, Cantona deixou claro ser contra o então candidato Jair Bolsonaro ao publicar uma foto de Sócrates no Instagram. Alguns dias depois, em vídeo com a legenda “#elenão”, expôs mais seu lado: “quando vejo a seleção brasileira aceitar jogar um amistoso na Arábia Saudita, por muito dinheiro eu tenho certeza, consigo entender por que milhões de brasileiros estão dispostos a votar em Bolsonaro”.

Portanto, Éric Cantona não foi somente um ótimo jogador de futebol. Foi e ainda é um exemplo a ser seguido fora de campo pelas suas convicções. Ele soube como poucos usar seu prestígio no futebol para ser um importante personagem nas lutas políticas. Hoje, o francês completa 55 anos de vida devotados ao futebol, à cultura, ao cinema e à política sem se esquecer de suas origens.

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