Transe na Igreja

Apesar de apelo “descolado”, igreja neopentecostal voltada para “jovens” reforça aspectos como a demonização de música não-religiosa, a LGBTfobia e o apoio oficial a Jair Bolsonaro

Texto e arte por Norberto Liberator

Parte I — O convite

Setembro de 2011. Estou no último ano do ensino médio e trabalho em uma empresa de cursos profissionalizantes que emprega adolescentes, como eu, para convencer pessoas a fechar contratos. Meu chefe, além de dono da escola de cursos, é pastor na igreja neopentecostal Sara Nossa Terra. Como ele costumava pagar as passagens de ônibus em dinheiro, passei a aceitar caronas algumas vezes por semana para economizar um pouco.

Para isso, tinha que ir à igreja com ele (ficava a caminho de minha casa e ele só fazia essa rota quando ia ministrar seus cultos). Apesar de à época ser um adolescente anticlerical que torce o nariz para ideias do tipo, fazia o trajeto para não precisar gastar com o ônibus e ter dinheiro para comer mais salgados durante os intervalos de trabalho.

Em uma dessas idas, fui convidado a um rolê da igreja, chamado “Revisão de Vidas”, tradicional evento realizado em uma chácara. Depois de muita insistência e argumentos de que haverá comida boa, contato com a natureza e talvez até um futebolzinho, acabo topando para ver no que vai dar.

Parte II — O rolê

Na igreja, onde nos encontramos para esperar a viagem, vejo vários colegas de trabalho. Foi como se a empresa fosse um campo de recrutamento. No caminho, falamos sobre o trabalho, quem bateu metas e quem não bateu, qual das três equipes em que fomos divididos estava indo melhor e por aí vai… Após cerca de uma hora, chegamos à chácara, que fica no fim da cidade. No local, devemos entregar os celulares sob argumento de que “aqui é um encontro com Jesus”. Foi justo, acho que deveria ser norma em encontros. O alojamento tem uma varanda bastante grande, em cujo centro há uma mesa também grande, e à direita há alguns corredores que levam a quartos e a um salão. Somos levados aos quartos, divididos entre homens e mulheres, ou garotos e garotas. Lá, deixo minha mochila e noto que há uma Bíblia em cima do beliche.

Volto à varanda, mas não há ninguém nela. Um presente passa e questiona: “Irmão, ali ele já vai começar mesmo ou é só uma palavra?” . Mesmo sem saber respondê-lo, digo meio confuso: “ah, acho que é só uma palavra mesmo, hein”. Após o “obrigado, então acho que vou tomar um banho antes”, penso no que ele queria dizer com a pergunta e o que interpretou com minha resposta. De qualquer modo, tenho de ir ao salão. É bastante grande e tem a estrutura de uma igreja. Noto que talvez seja o único sem uma Bíblia. Alguém me diz que posso pegar uma emprestada atrás dos bancos. Uma pastora está no púlpito falando sobre como todos sentirão suas vidas mudadas após aquele encontro, sobre quantas vidas inclusive já mudaram e sobre como Jesus “é tremendo”. Ela pergunta: “posso ouvir um amém, igreja?” e a plateia responde com um estrondoso amém. Notei que se tratava de um encontro entre todas as sedes da Sara Nossa Terra da cidade.

A igreja tinha um apelo “descolado” — meu patrão, por exemplo, tinha cabelos arrepiados e abusava das gírias — e não era incomum encontrar pastores e fiéis dizendo que “Jesus aceita a todos como são, não precisa mudar sua roupa, seu cabelo ou seu jeito de ser”.

No entanto, a demonização de música não-religiosa, chamada de “música mundana”; a LGBTfobia e o apoio oficial da igreja a Jair Bolsonaro, na figura de seu fundador e principal líder, Robson Rodovalho, demonstraram incompatibilidade entre discurso e prática. Após o sermão inicial, é hora da janta: arroz carreteiro e salada, além de vários tipos de refrigerante. Eu comi e continuei tomando Coca-Cola e guaraná, enquanto prestava atenção nas pessoas. Havia os jovens já mencionados, mas também senhorinhas e senhorzinhos sorridentes, provavelmente com a esperança de “mudança de vida” prometida.

Uma senhora começa a conversar comigo e explica que a igreja fez com que seu filho “se libertasse das drogas”. Um senhor se aproximou e também começou a contar sua história. Disse que era viciado em jogo, bebida, prostituição, “tudo de ruim”, como define. “O diabo gosta de fazer a gente pensar que é livre, mas, na verdade, ele prende a gente. A vida aí no mundão é uma prisão. O cara acha que pode tudo, mas quem pode tudo é Deus”. As falas da noite não terminaram. Somos todos levados ao salão novamente, onde um pastor de bigode grosso discursa. Ele se apresenta, aponta seu filho dizendo que “o guri já está no caminho desde cedo”.

Quando olho, vejo que se trata de um rapaz que usa cabelos compridos, amarrados em rabo de cavalo, e brincos nas orelhas. Ele lidera os jovens em sua filial da igreja e, nesta noite, ajudou a coordenar o evento. Os outros jovens aqui também têm visual descolado: meninas com cabelos pintados de vermelho e azul, garotos com brincos, alargadores, calças largas típicas de skatistas, bonés. O bigodudo sai de cena e entra um pastor de cabelos compridos, que dá lugar à esposa de meu chefe. Em seguida, quem discursou foi meu chefe. As falas são breves, trata-se de uma apresentação. Ao final, no centro da varanda onde comemos, havia bolo. Comi, tomei refrigerante e vi os sinais para que nos desloquemos aos quartos. Noto um rapaz sentado na mureta da varanda, com aspecto frustrado, cabelos castanhos quase ruivos e quase compridos, com franja e cobrindo as orelhas. Achei que alguém estava tão deslocado aqui quanto eu.

Vou até ele e pergunto se está desanimado. Ele diz que sim, explica que está no início de uma empresa para gamers e que não liga para religião, mas aceitou o convite para o retiro. “Sei lá, todo mundo fala que sentiu algo diferente, até agora não senti nada… vamos ver até o final”. Ao contrário de mim, ele está frustrado por não conseguir preencher um vazio espiritual, por buscar algo e não encontrar. Minha frustração é outra: achei que seria um rolê minimamente divertido e está entediante.

Parte III — Era mesmo cilada

Somos requisitados pelo rapaz de cabelos compridos, filho do bigodudo, que nos chama na gíria própria dos pentecostais: “vamos, varões”. Lá vamos nós ao quarto. Eu me deito sobre o beliche onde deixei minha mochila e tento dormir enquanto folheio a Bíblia que deixaram sobre a cama.

Escuto um garoto dizer: “nós fundamos uma seita, e o nome da nossa seita é bu-seita; o primeiro mandamento é que toda perereca é igual perante o bilau”, enquanto outro completa: “silêncio, igreja, segundo mandamento: façam o bem, uma mamada e um copo d’água não se nega a ninguém”. Outro jovem protesta: “Mister Catra uma hora dessas?”, enquanto começo a cair no sono. 

Acordo com o rapaz cabeludo dizendo: “vamos levantar, varões!”. Somos direcionados novamente ao salão, onde o pastor de cabelos compridos (que não é o filho do bigodudo, mas um homem mais velho), com fala mansa, começa a contar causos. Diz que, quando acorda, tudo faz “croque” e que, por isso, ele não está ficando velho, mas sim “crocante”. Diz também que a mensagem de Deus é para todos. Em seguida, dá lugar no púlpito a uma mulher que alega ser coordenadora “das princesas”. Ela conta que “hoje, a moda é ficar. Mas princesas não ficam, elas têm de se preparar para encontrar seus príncipes apontados por Deus”. 

Após um almoço, voltamos ao salão, onde o pastor do bigode falava sobre como “o mundo está cheio de porcaria”. Depois, pede para passarem uma caneta e um caderno, um a um, aos presentes, para que estes escrevessem um vício que possuam e nomes de pessoas com quem já tiveram “relações promíscuas”; e para que guardem o pedaço do papel em que tenham registrado. Veio outro pastor, que entre outras coisas, mandou todos esticarem os dois braços por trinta segundos, para que “sintam o que Jesus sentiu”. Depois das falas, vamos à parte externa da chácara, onde há uma fogueira. As pessoas jogam nela pedaços de papel: são os nomes que escreveram dentro do salão, a pedido do bigodudo. Depois de jogarem, gritam: “meu nome é fulano, e eu estou livre!”. Todos aplaudiram. Minha colega de serviço que está a meu lado questiona: “não escreveu nada, Norberto?” e respondo que não tenho vícios. Após o ritual, jantamos. Sento-me com meu chefe, sua irmã e seu cunhado. Conversamos sobre a empresa, ouço piadas do patrão sobre os colegas. Após a janta, voltamos aos quartos.

Parte IV — Jesus cura

Sou acordado pelo mesmo rapaz que me acordou na manhã anterior. Agora, no salão, uma mulher explica que “a ciência diz que viemos do macaco” e aconselha: “olhem para vocês, irmãos. Acham que se assemelham a um macaco?”. O rapaz com quem conversei durante a primeira noite está ao meu lado e responde: “sim”. A esposa de meu chefe subiu ao púlpito e contou sua história: “Estava no Rio de Janeiro, pensando em sair da casa de meus pais, e abri a Bíblia. Estava dizendo para que largasse minha parentela”. Disse como conheceu o chefe e como começaram a namorar. 

Depois, ele também subiu e contou basicamente as mesmas coisas, com destaque para sua interpretação de que Jesus é um distribuidor de carros: “eu tinha um Chevette que não abria uma porta, tinha que empurrar toda vez que ia andar; Jesus foi dando cada vez um carro melhor, até eu ter o que tenho hoje”. Não sou bom em lembrar nomes de carros, não sei dizer qual o dele. Mas sei que não é popular. Outro casal que sobe ao púlpito são a secretária da empresa, casada com um dos caras mais fanáticos que já conheci. Em seu “testemunho”, ela afirma que ele era “completamente ateu” e que se tornou religioso depois de ela “orar muito e pedir a Jesus todos os dias” por isso. 

Em seguida é a vez do marido dela, que gosta de falar de política. Diz que tem gente no Congresso querendo acabar com o conceito de ‘família’ e por aí vai. E olha que, em 2011, a bancada evangélica ainda nem assustava tanto quanto viria a fazê-lo. “Já imaginaram um presidente que suba a rampa e diga ‘paz do senhor’? É um sonho que tenho, e tenho certeza que um dia ele se realizará! Sei que um dia, ainda teremos um presidente evangélico”. Em determinado momento, após almoçarmos, o rapaz cabeludo volta a recrutar jovens. Vamos a um ponto da chácara onde sentamos todos em roda. Ele conta sua história e cada um vai contando a sua. Há histórias de abandonos, drogas, crimes. Em minha vez, digo meu nome, que gosto de desenhar e que estou no retiro por convite. E só.

Parte V — Transe!

Após uma refeição incluindo bombons, voltamos ao salão. Lá está o pastor bigodudo. Desconfio que ele seja o grande mandachuva. Começa falando sobre os jovens, como quase todos; aos poucos, diz aleatoriamente algumas palavras incompreensíveis. Diz que foi “macumbeiro” e “bruxo”, que chegou ao grau 32 do que chama de “magia negra”. “O mundo é lotado de demônio, tem guerra o tempo todo. Eu tenho o dom, consigo ver. Agora mesmo, vejo vários anjos aqui. Os demônios tentam se aproximar, mas não conseguem. O Espírito Santo aqui é forte”. 

As pessoas olham com atenção, assustadas. Ele continua: “Fui um dos piores, era traficante. Tudo o que não presta, que vocês imaginem, eu mexia. E era envolvido com gente poderosa. Esse pessoal da política, da tevê, quase todos são envolvidos com tráfico, com bruxaria, com macumba”. O clima até então pacífico se torna uma confusão generalizada quando ele diz que está sentindo o Espírito Santo se manifestar e convida a um “batismo de fogo”: “Aqui, nós vamos batizar todos com o espírito! É batismo de fogo, irmãos! Podem se entregar ao Espírito Santo! Façam o que quiserem fazer, mas fechem os olhos!”. Naquele momento, muitos começam a gritar “aleluia” e, outros, a “falar em línguas estranhas”.

Os outros pastores vão até as pessoas e as incitam a entrar no transe coletivo. Percebo porque abro disfarçadamente os olhos, que estavam fechados a pedido do pastor. Começo a pensar se seria este o motivo para proibirem aparelhos eletrônicos. Fecho novamente os olhos. Ouço muitos gritos, só penso em sair. O bigodudo grita que está vendo anjos batalharem com demônios. Alguém me toca os ombros. É meu chefe. Ele põe as mãos sobre minha cabeça e começa a gritar: “materialize-se, espírito! Materialize-se! Materialize-se!”. O bigodudo chega para dar reforço, gritando mais palavras incompreensíveis. Eu penso: “não vou ceder, não vou ceder, não vou ceder”.

Depois de aproximadamente três minutos (muito tempo, dado o que estavam fazendo), os pastores desistem de me colocar na dança. Abro os olhos e o chefe pergunta: “Está sentindo alguma coisa?”. “Não”, respondo. Olho para os lados e a cena é hollywoodiana: todos os fiéis estão caídos. Sou o único de pé, à exceção dos pastores. O garoto que conheci na mureta também está caído.

As pessoas parecem desmaiadas, seus olhos estão fechados. Penso no que pode ser. Transe hipnótico? Placebo? Alguma substância tóxica usada sutilmente pelos pastores nas pessoas? É assustador. E não posso fazer nada. Não tenho como filmar. Ninguém fora da bolha deles viu, é oculto. Tudo o que quero é ir embora. Além de assustado e indignado, também estou constrangido, afinal, sou o único de pé quando todos estão caídos no chão como desmaiados, ou se debatendo. Aos poucos, as pessoas em transe começam a se recuperar.

O garoto da mureta é um dos que mais demoram para voltar ao normal. O bigodudo declara: “vem ajudar, pessoal, que isso aqui não é Espírito Santo, não”. Penso comigo mesmo que a tradução para tal frase é: “passou do resultado desejado, venham aqui pra me ajudar, porque a coisa pode ficar feia pro nosso lado”. Após algumas chacoalhadas, o garoto acorda.

E eu só penso em ir embora. Ainda há uma apresentação musical dos jovens, uma confraternização parecida com a de fim de ano em que todos se abraçam. Finalmente, saímos e vemos os ônibus. Saio insatisfeito por ter sido enganado sobre o que era o tal rolê, mas satisfeito por me livrar — e poder contar — sobre a experiência mais macabra da minha vida.

 

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