Tira-dúvidas sobre o Ramadã, mês sagrado para a fé islâmica

Jejum, abstinências e estudos marcam o mês em que, para a tradição muçulmana, o Alcorão foi declamado ao profeta Muhammad

Por Norberto Liberator e Camila Andrade Zanin

Confira, abaixo, as duas entrevistas na íntegra:

 

Muhammad Puncha, cientista social e professor, sunita

Qual a origem do Ramadã e o que ele representa para a religião muçulmana?

O Ramadã é o nono mês do calendário islâmico. Ele na verdade já recebia esse nome antes do surgimento da profecia do profeta Muhammad, que a paz e bênção de Deus estejam com ele, e batiza este mês. É o mês no qual o Alcorão, grosso modo, foi revelado ao profeta. Porque o termo em árabe é Anzallah, então ele foi apresentado de forma subjetiva, intuitiva. E falando de forma objetiva, quando ele foi fazer sua peregrinação, porque ele tinha o hábito de fazer um retiro. Ele estava numa caverna bem pequena, meditando já há alguns dias, ele tinha esse hábito — ele e a esposa dele; a Khadija, que pediu ele em casamento, suportava esse hábito e apoiava ele nisso –, e foi quando o anjo Gabriel — que a paz esteja com ele — apareceu pra ele e começou a recitação do Alcorão. A primeira palavra que ele disse foi “iqra”, que em árabe é “leia” ou “recite”, o profeta disse que não sabia: “o que você quer que eu leia?”. 

E o anjo insistiu: “iqra”, e o profeta perguntou: “mas o que você quer que eu leia, que eu fale?”. E aí o anjo disse: “leia em nome do Senhor que te criou”. E aí começa a revelação do Quram, que seria o capítulo de número 96 do Alcorão. E esse episódio aconteceu no Ramadã, se dá no mês no Ramadã. Neste mês, onde é revelado o Alcorão, digamos que é uma transformação na história. Para os muçulmanos em geral, a história se compõe de uma hiero-história, que retrata também a manifestação do sagrado e o Ramadã tem esse sentido. Ele aparece no Alcorão, no capítulo da vaca, o segundo capítulo do Alcorão, quando diz que o Ramadã é o mês em que foi revelado o Alcorão, onde diz que quem puder jejuar deve jejuar; quem estiver doente ou viajando jejua depois, quando for possível; depois tem algumas regras em relação a isso. Então ele é um mês central para a prática do Islã, uma vez que ele compõe um dos pilares dela. A gente tem os pilares da prática e os pilares da fé. Os da prática são a shahada, que é o testemunho de fé; depois tem o salah, que é a oração cinco vezes por dia; aí tem o zakah, que é a caridade compulsória e é um dos poucos pontos onde o Islã é sim ou não. Ou você pratica caridade, ou você recebe. Não tem meio termo. 

E o quarto ponto é o jejum no mês do Ramadã. O quinto ponto é o haj, a peregrinação. Tem um dia em que é obrigatório o muçulmano jejuar, outros em que é altamente recomendável; mas o compulsório para todos os muçulmanos é o mês do Ramadã. Fazer esse jejum de uma lua até outra. A lua cheia dos dias 13, 14 e 15 do mês lunar; a lua minguante, desde o começo até seu fim; e termina no mês de shawal, acontece a festividade, e aí se você jejua desde a hora em que o sol nasce até quando se põe, tem uma festa para comemorar, nesse dia é proibido jejuar. As pessoas devem se alimentar, devem comer, e aí você vai almoçar pela primeira vez em um mês, então esse almoço costuma ser épico. É gostoso.

Como tem sido recebido, dentro da comunidade muçulmana, o fato de muitas pessoas usarem filtros do Ramadã aleatoriamente em stories do Instagram, sem relação com o simbolismo do período?

Eu vi algumas reações e eu faço parte de um grupo de pessoas, acho que até significativo, que não tá muito ligado no que tá acontecendo por fora da sua prática de jejum. No mês do Ramadã, é importante você rezar, você se dedicar a práticas intelectuais e espirituais, ter uma prática de meditação e oração constante, evitar falar mal das pessoas, não que isso seja permissível em outros momentos do ano, mas no Ramadã em especial você evita ficar nervoso, eu faço parte desse grupo. Mas sei também que tem pessoas que se preocupam e é um pouco frustrante, as pessoas se sentem um pouco usurpadas daquilo que seria uma comemoração própria delas. Tem um aspecto cultural também, sou brasileiro, se eu vejo foto de uma mulher de biquíni em uma publicação do Ramadã, grandes coisas. Isso não me afeta, cansei de ver mulher de biquíni na minha vida, agora se você pega uma pessoa, como conheci um rapaz que veio da Síria que tem uma outra cultura sobre esse quesito, ele considera que quebrou o jejum dele quando viu uma mulher seminua. Para ele, ele considerou que entrou em tentação e isso quebrou o jejum dele. Por mais que eu tenha uma esposa, que eu ame admire ela, não é recomendável. A palavra é jejum, mas ele também se relaciona a abster-se daquilo que te dá satisfação no dia a dia, não que recitar o Alcorão não dê satisfação, mas este é o mês do Alcorão. Dificilmente você vai ver um muçulmano dizendo “nossa, que pena que vai ter o Ramadã”. A gente gosta. 

Vi pessoas chateadas com isso porque é como se fosse um momento nosso de comemoração, um quinto da humanidade é muçulmano, a gente tá podendo compartilhar alguma coisa no espaço público que a rede social potencializa e de repente vê coisas que simplesmente não gostaria de ver. É complicado porque no Islã não tem a ideia de proselitismo. Você tem a ideia de dawa. Falar sobre a mensagem. Nunca vai gente na sua porta pregar o Alcorão. Porque existe essa noção de que não se impõe a religião, a imposição é proibida e isso está no versículo 256 do capítulo dois. Mas de toda forma é isso, qualquer outra coisa que não se relacione ao Ramadã, isso também gerou episódios de islamofobia, teve uma jornalista que falou: “olha, se os muçulmanos fizeram o que fizeram porque o Charlie Hebdo porque desenharam o profeta deles, o que não vão fazer com as pessoas brincando com o Ramadã?”. Por mais que seja um raciocínio simplório, ele expõe todo um preconceito: o muçulmano é capaz de toda violência por bobagem. Se um dia eu gritar com alguém na rua, é porque eu sou muçulmano e não porque sou uma pessoa que como qualquer outra fica nervosa; agora, se eu fizer caridade, é porque sou um cara legal e não porque sou muçulmano. Se eu publico um artigo científico, não é porque sou muçulmano. Mas se faço algo errado sim. Eu fico do lado dos que estão ignorando, é melhor tocar a vida porque as pessoas vão fazer isso o tempo todo.

Eu até coloquei esses tempos um ahadiz, que é uma narrativa sobre a vida do profeta Muhammad, no qual conta a história de um beduíno que foi fazer xixi dentro da mesquita. Os companheiros do profeta falaram: “nossa, vamos parar ele”, e o profeta disse: “calma”, esperou ele terminar e disse: “olha, aqui não é o lugar para você urinar”. Então assim, quando a pessoa não sabe o que tá fazendo, você tem que ter paciência e misericórdia redobrados com ela. Eu sinto que é o que a maioria dos muçulmanos que conheço está fazendo. As pessoas estão explicando, publicando, escrevendo, outros só estão falando: “ah”. De qualquer forma isso não vai nos impedir de seguir nosso mês.

Apesar de ter gerado confusão, você acredita que tem um lado positivo ao trazer um debate até então desconhecido?

Certamente. Quando o Islã entra em evidência por qualquer motivo que seja, as pessoas buscam informações, há procura por livros, reportagens, entrevistas, investigações. Você não precisa concordar com o Islã. Mas precisa ter a ideia de que ele não é aquilo que as pessoas fantasiam. E a partir do momento em que as pessoas procuram algum tipo de informação, isso traz a realidade da religião. Então você vê, por exemplo, as mulheres muçulmanas, que são as principais alvejadas em ataques islamofóbicos na internet ou fora do espaço virtual, estão fazendo um trabalho interessantíssimo, esclarecendo para as pessoas. É difícil falar isso, mas no Alcorão tem um capítulo que diz que certamente a facilidade está na adversidade. Então quando algo problemático se coloca para você, é a oportunidade para solucionar um problema. Independentemente de acreditarem em Deus ou não, acho que há algo de sabedoria pra se tirar desse episódio.

 

Lybia Abaaoud, jornalista, xiita 

Qual a origem do Ramadã e o que ele representa para a religião muçulmana?

O Ramadã é o nono mês do calendário islâmico e é considerado por nós um “mês sagrado”. 

Ele é o mês onde acreditamos que o alcorão (nosso livro sagrado) foi revelado e é nessa época que fazemos o jejum.

O jejum de Ramadã é total, consiste em se abster de água, comida, relações sexuais, quem fuma não pode fumar durante o dia e passamos a maior parte do tempo se dedicando à orações e à nossa conexão com Deus, já que é um período em que estamos totalmente ligados ao nosso criador.

Como tem sido recebido, dentro da comunidade muçulmana, o fato de muitas pessoas usarem filtros do Ramadã aleatoriamente em stories do Instagram, sem relação com o simbolismo do período?

Eu acompanho muitas blogueiros e muitos blogueiros que, desde o início do Ramadã, quando o Instagram teve iniciativa de colocar stickers nos stories, não se sentiram muito confortáveis com a ideia de muita gente, inclusive muitos influenciadores, estarem usando aquela figurinha para promover coisas fora da religião. E em partes eu concordo, porque muita gente não usa por mal, mas tem muita gente, eu diria que uma grande parcela, usam disso para promover seus trabalhos, muitas vezes trabalhos que seriam considerados bem desrespeitosos pela religião. 

Eu vi fotos de pessoas colocando esses stickers usando biquíni, posando nua, num mês que para a gente é considerado sagrado. E geralmente são pessoas que não sabem nada sobre a religião, o que representa o Ramadã, muita gente ficou confusa com as figurinhas. Mas eu fiz questão de explicar para algumas pessoas o que aquilo significava e porque a gente tinha que tomar cuidado para usar. Mas a reação, uns 90% da comunidade, assim, não se sentiram muito confortáveis.

Apesar de ter gerado confusão, você acredita que tem um lado positivo ao trazer um debate até então desconhecido?

Sim, porque apesar dessa confusão, acho que surgiu um debate muito grande primeiro em torno do respeito, o Instagram é laico, mas a gente vive num país em que a gente convive pacificamente com outras culturas, com outras religiões e isso é um esforço muito grande que muita gente tem feito, porque a gente via hashtags, palavras-chave, postagens sempre de cunho cristão, como Natal, Páscoa, até ano novo, e eu tô gostando muito dessa iniciativa de colocar e dar visibilidade para outras religiões, não só o Islã. 

E esse debate todo promovido em cima disso, eu acho que se configurou em um lado positivo e um negativo, porque ao mesmo tempo que teve muita gente fazendo vídeos, inclusive não muçulmanos explicando o que era aquele sticker, por que a gente tinha que ter cuidado para usar, muita gente chegou para atacar também. “Ah, por que o Instagram não faz sticker de Páscoa? De natal”, mas se parar para pensar são uma coisa nova. Eu, do ano passado não me lembro de stickers para uma data religiosa.

Então acho que dá engajamento, dá debate, e isso só mostra que os muçulmanos também estão presentes em nossa sociedade. E existem muçulmanos brasileiros, porque muita gente acha que a gente é árabe, tem que ser sempre descendente de árabe, e na verdade uma grande parcela da população muçulmana é nascida e criada aqui.

Qual a importância específica do Ramadan para as mulheres muçulmanas?

Não tem diferença, da mesma forma que os homens fazem, as mulheres também. Salvo algumas exceções, por exemplo, quando as mulheres estão no período menstrual, elas se abstêm das orações obrigatórias, mas podem fazer súplicas, isso tanto dentro do Ramadã quanto fora. E elas também são isentas do jejum se estão grávidas, no período menstrual ou amamentando. Mas isso é por uma questão de saúde. Não só as mulheres, mas idosos, crianças, pessoas que precisam tomar alguma medicação controlada e literalmente não conseguem fazer o Ramadã, essas pessoas não precisam jejuar, mas elas precisam reverter todos esses 30 dias do jejum em caridade, oração, súplicas e boas ações. É um período em que a gente faz muita caridade e são coisas que essas pessoas podem fazer.

Há alguma diferença na prática do Ramadã entre xiitas e sunitas?

As diferenças são mínimas. Começa pela oração, mas isso dentro e fora do mês sagrado. Os sunitas rezam cinco vezes por dia, mas em horas separadas. Os xiitas também fazem as cinco orações, mas a gente vai juntando. Faz a da madrugada, a do meio-dia a gente junta com a da tarde; e a do pôr-do-sol, a gente junta com a da noite. Durante o mês do Ramadã, os sunitas têm um ritual à noite chamado Taraweeh, que é uma oração de mais ou menos uma hora. Os xiitas não fazem o Taraweeh. Fazem súplicas, leem o Alcorão e passam a maior parte do tempo estudando a religião. A gente sempre coloca o mérito de terminar o mês, esses 30 dias de Ramadã, lendo o Alcorão inteirinho. Ele é dividido em 114 suratas (capítulos) e a gente lê uma fileira de 10 a 20 versículos por dia.

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