A marca do AI-5
- 2 de dezembro de 2020
Ao final da década de 1960, o mundo inteiro estava passando por grandes mudanças. No Brasil, uma delas veio para pior: a instauração do Ato Institucional Número 5. Alguns cineastas foram combativos na maneira com a qual retrataram o endurecimento do regime militar, sendo reprimidos, de maneiras distintas, pelo governo
Por Igor Nolasco
Colaborou Adrian Albuquerque
1968 é um ano de mudanças para a sociedade ocidental. É o apogeu de toda a contracultura da década de 1960, seu momento mais emblemático, mais decisivo.
Na França, o mês de maio é marcado para sempre como aquele no qual protestos relativos a causas políticas e sociais eclodem no país – cineastas revolucionários, capitaneados por Jean-Luc Godard, exigem a paralisação do evento cinematográfico de maior prestígio do país, o Festival de Cannes, e efetivamente conseguem.
Nos EUA, fervilham pautas que compreendem o combate à segregação racial, à brutalidade policial e à repressão sistemática a lideranças populares socialistas. Pessoas se unem sob a bandeira da liberdade, palavra que define as mudanças socioculturais daquele momento: a popularização da pílula do dia seguinte, a revolução sexual, o sentimento de comunhão que une as pessoas.
No Brasil, movimentos se articulam em resistência ao regime ditatorial já vigente no país há quatro anos. Quando descobertos, os “subversivos” são sequestrados, presos, torturados, mortos e têm seus corpos escondidos. Algumas classes, como a dos professores, são sistematicamente lidas como subversivas, ainda que muitos de seus expoentes não o sejam.
A situação, que já estava ruim, piora no mês de dezembro. O Brasil fecha o ano com a instauração do Ato Institucional de número 5. Começam ali os chamados anos de chumbo, com o endurecimento do regime.
O baque daqueles duros anos é sentido pelo cinema brasileiro. Desde que a ditadura se instaurara em 1964, haviam produções que abordavam, de maneira mais ou menos sutil, as repercussões daquele novo regime político. “O Desafio“, por exemplo, foi lançado em 1965, um ano depois do golpe.
Dirigido por Paulo Cezar Saraceni, é um longa que se debruça sobre a mudança política quase que imediatamente após ela acontecer, tendo como protagonista um trabalhador de classe média que se vê preso numa sensação de impotência, de desolação ante à morte de suas utopias pessoais em meio ao cenário no qual o país está inserido. Com o AI-5, no entanto, tudo piora. Cessão das liberdades individuais, dos direitos políticos. E cineastas que arriscam afrontar o regime frontalmente através de suas câmeras passam a estar sujeitos à represália.
É o que acontece a Olney São Paulo, cineasta baiano cuja filmografia desponta em paralelo com a dos grandes quadros do Cinema Novo. Entre o final de 1968 e o começo de 1969, o diretor filma “Manhã Cinzenta“, um média-metragem que, através de uma linguagem experimental, retrata jovens sendo sequestrados e fisicamente torturados.
Uma cópia do filme é exibida em um avião sequestrado pelo Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), organização de luta armada em combate à ditadura. Ela chegara às mãos do grupo através de um de seus integrantes, que pertencia também à Federação Carioca de Cineclubistas. O governo, dessa maneira, vai atrás do responsável por aquela obra subversiva. Olney é preso e torturado pelo regime, como os personagens de seu filme. Retorna à liberdade profundamente abalado, tanto física quanto mentalmente.
Todas as cópias de “Manhã Cinzenta” são apreendidas pelos militares, que o fazem na intenção de destruí-las, como de praxe com material considerado por demais politicamente afrontoso. Uma única cópia do média-metragem é salva, e por uma figura de máxima importância para o cinema brasileiro – Cosme Alves Neto, diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Na instituição, a cópia permaneceu ocultada até o fim do regime, sendo ocasionalmente enviada para fora do país, na intenção de ser exibida em festivais internacionais. Graças à coragem de Cosme Alves Neto em preservar o legado fílmico de Olney São Paulo, “Manhã Cinzenta” pode ser assistido até hoje. Com sua saúde debilitada, Olney continua filmando até falecer precocemente, em 1978, vítima de um câncer pulmonar.
Olney é o cineasta mais diretamente, nos escopos físico e mental, afetado pela ditadura militar brasileira. Em seu célebre livro “Revolução do Cinema Novo”, Glauber Rocha se refere a ele como um “símbolo do censurado e reprimido”, um mártir. Diversos outros cineastas tiveram suas obras interditadas, apreendidas, censuradas, reeditadas ou completamente destruídas pela Censura da Polícia Federal. Não há, entretanto, caso mais extremo que o de Olney São Paulo.
Dentre os filmes que também foram suprimidos está um que entrou para o cânone da cinematografia brasileira como um dos mais conhecidos expoentes do movimento do Cinema de Invenção: “Matou a Família e Foi ao Cinema“, de Júlio Bressane, que é lançado em 1969 e interditado pouco depois de sua estreia em circuito comercial. O motivo: para além de retratar pautas que consideradas suficientemente subversivas, como relacionamentos homoafetivos, a produção possui uma longa sequência de tortura.
Um ano antes, outro longa do mesmo movimento também se atrevera a retratar a violência praticada pelo governo, dessa vez de maneira mais alegórica, porém nada sutil: “Hitler III Mundo“, de José Agripino de Paula, transforma os torturadores em gorilas fardados. Os homens fantasiados como animais compõem o rol de figuras pouco usuais presentes nesse universo fílmico, junto a uma gueixa, interpretada por Jô Soares, e um personagem trajando uma fantasia de corpo inteiro do personagem O Coisa, dos quadrinhos do Quarteto Fantástico.
Neville D’Almeida é um caso a parte, sendo por alguns considerado o cineasta mais censurado do Brasil. Seu primeiro longa, “Jardim de Guerra“, fala sobre uma vasta gama de temas politicamente subversivos aos olhos do regime, além de dedicar uma boa porção de sua minutagem a sequências que mostram seu personagem principal sendo fisicamente torturado por agentes não identificados, que o haviam interceptado quando ele se envolvera em um esquema de tráfico de armas.
“Jardim de Guerra” é interditado no Festival de Brasília de 1968, tem cortes impostos aos seus negativos em 1969 e é exibido poucas vezes a partir de 1970, em uma cópia completamente retalhada e significativamente mais curta em decorrência da ação da Censura Federal. Como foi o caso com “Manhã Cinzenta”, a versão sem cortes de “Jardim de Guerra” sobrevive graças à preservação, às escondidas, de uma única cópia. Os rolos 35 mm haviam sido enviados para a França, onde a obra abrira a primeira Quinzena dos Realizadores da história do Festival de Cannes.
A cópia permanece às escuras na Europa até os anos 2010, quando é redescoberta e retorna ao Brasil, para ser preservada pela mesmíssima Cinemateca do MAM que, décadas antes, havia salvado o filme de Olney São Paulo (que, aliás, também fora exibido na Quinzena dos Realizadores de Cannes, dessa vez em 1970). Projetos posteriores de D’Almeida, como “The Night Cats” e “Surucucu Catiripapo”, também são interditados e censurados pelo regime militar, tendo sido perdidos e jamais reexibidos. A preservação, problema secular do cinema brasileiro, em muito foi prejudicada pela ação ativa da ditadura em destruir parte do patrimônio cinematográfico do país que governava.
Como estes, outros filmes tem sua existência ameaçada pela Censura até o término oficial do regime, em 1985. Alguns são efetivamente suprimidos, nunca vistos novamente. Outros, como nos exemplos supracitados, são salvos por pouco. Se esses filmes existem hoje para serem pesquisados, assistidos e debatidos, é graças a esforços individuais e coletivos, de arquivos, cinematecas e pessoas interessadas em perpetuar a história de nosso cinema.
Preservação no cinema brasileiro, 35 anos após a dita “abertura democrática”, continua sendo uma guerrilha.
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[…] de 1968 – e sobre os desdobramentos do AI-5 na esfera do cinema brasileiro, já discorremos num outro texto desta modesta coluna que me […]
[…] de 1968 – e sobre os desdobramentos do AI-5 na esfera do cinema brasileiro, já discorremos num outro texto desta modesta coluna que me […]
[…] ser colocado a público, respeitando as morais e os bons costumes. Com isso, diversas obras foram drasticamente modificadas e até perdidas, enquanto jornais amanheciam com receitas de bolo para cobrir o espaço de notícias e reportagens […]