Aborto no Brasil: uma autonomia inoperante
- 16 de outubro de 2020
O tabu em torno da interrupção da gravidez se dá por aspectos morais da sociedade, que de tão enraizados interferem na legislação
Por Carolina de Mendonça
Ilustração por Marina Duarte
Interrupção de gestação é algo extremamente comum. Em 2016, no Brasil, estimava-se que uma a cada cinco mulheres de até 40 anos passou por uma aborto provocado. Já os abortos espontâneos ocorrem com uma frequência entre 10% a 50% das gestações ao redor do mundo. Apesar de corriqueiro, o tema não é amplamente debatido e as vozes de quem passa por tal situação tendem a ser abafadas.
O tabu em torno da temática se dá por aspectos morais da sociedade, que de tão enraizados interferem na legislação. Exceto em caso de concepção em meio a violência sexual, feto anencéfalo e/ou risco de vida para gestante, a indução do aborto é proibida. Mesmo nos casos previstos em lei, há constantes impedimento e violência entre as que se encaixam para passar pelo procedimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Não há hospitais que realizem o aborto pelo SUS em todos estados brasileiros. Entre os que são referência, existem diversas problemáticas de gestão, que muitas vezes criam impossibilidades para a realização desse procedimento. Por conta da pandemia, as dificuldades de abortar no Brasil aumentaram significativamente.
Estupro é uma violência baseada em dominação. No Brasil, estima-se que haja um caso a cada 11 minutos, sendo as principais vítimas mulheres e meninas cisgênero. A concepção nesses casos se torna um risco e a interrupção da gestação é a única saída. As que buscam a realização do abortamento pelo SUS precisam passar por entrevistas com diferentes profissionais de saúde, os quais buscam inconsistências no discurso sobre o trauma recente. Tal atitude ignora o fato de que contradições ao se falar sobre um episódio de violência são algo esperado, pois costumam ocorrer esperados por defesa da psique. Os profissionais acabam criando impedimentos no acesso ao direito previsto em lei, além de revitimizar as vítimas de estupro, agora em uma violência institucional.
Em 28 de agosto deste ano, foi lançada a Portaria nº 2.282, que prevê quebra de sigilo de profissionais de saúde que atendem vítimas de estupro. A Portaria tem um caráter inconstitucional e de tortura visando aumentar as dificuldades para o acesso ao aborto legal. O texto exige documentação por escrito para evitar procedimentos potencialmente traumáticos à gestante que pretende abortar, como ouvir os batimentos do feto. O texto também traz um caráter hiperbólico aos riscos do procedimento realizado com acompanhamento de profissionais de saúde.
O aborto em caso de fetos anencéfalos foi descriminalizado apenas em 2012, por uma decisão de 8 votos a favor e 2 contrários entre os ministrosdo STF. Mesmo que nesses casos a vida do feto seja inviável, a gestação era forçada. Como o caso da lavradora Severina, que tentou na Justiça, em 2004, a antecipação do parto de seu segundo filho – que sofria de anencefalia. Os órgãos de Justiça e as instituições de saúde violentaram de diversas formas a mulher que pedia, apenas, por autonomia. A tragédia da pernambucana se tornou documentário, “Uma História Severina” (Débora Diniz, Eliane Brum; 2005). A produção mostra as dores de se buscar a interrupção da gestação por meios legais.
A moral perversa imposta em volta do aborto é defendida por Damares Alves, atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que se posiciona marcadamente contrária ao aborto mesmo em caso de risco de morte para a grávida. O discurso da ministra defende que gestações de risco à vida são planos divinos, impondo uma moral religiosa a todos cidadãos brasileiros. No último mês de agosto, a política moral de Damares foi ilustrada em um caso hediondo de uma criança de apenas 10 anos que passaria pela interrupção da gravidez. Mesmo com risco de vida da gestante e sendo um caso indiscutível de estupro (não há consentimento para práticas sexuais em sujeitos com menos de 14 anos), a ministra agiu a impedir o procedimento.
Outros casos de abortamento voluntários são considerados crimes pelo Código Penal brasileiro. Por exemplo, a gestante que provoca o aborto ou consente que outrem o faça em si pode ser condenada de um a três anos de detenção. Punição por escolher sobre seu corpo. O crime prescreve em oitos anos. Dentro desse período de quase uma década, não se recomenda falar sobre o ocorrido. Amigos, parceiros, colegas de trabalho ou familiares podem ser autores de denúncias contra aquelas que cometem aborto.
Falar abertamente de envolvimento em uma interrupção voluntária na gestação pode ser um risco até mesmo em diálogos com profissionais de saúde. O código de ética das diversas profissões da saúde impede quebra de sigilo desse tipo de informação. Por muitas vezes denúncias por parte de profissionais de saúde à polícia são feitas ainda nos hospitais durante o abortamento.
A ilegalidade do procedimento na maioria dos casos leva à realização do mesmo de forma clandestina. Isso faz o acesso ao aborto ser caro, ou seja, nem todas podem pagar por um método seguro. Mulheres em situação de vulnerabilidade costumam utilizar de chás e medicamentos para “envenenar” o útero e, em alguns casos, tentativas de ferir o útero para induzir ao abortamento. E mesmo quando se é possível buscar um método seguro, por muitas vezes falta informação.
Há pouco mais de um ano, a Revista AzMina foi atacada pela ministra Damares Alves. O veículo independente fez uma reportagem que trazia informações obtidas em um documento da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o uso de Misoprostol (também conhecido pelo nome fantasia de Cytotec). O acesso ao medicamento não se basta, sendo necessário conhecer, por exemplo, dosagem e uso de acordo com a idade gestacional, casos de contraindicação ao uso e ter uma companhia para caso de reações adversas.
Consequências indesejáveis acabam por ser comuns, afinal, o aborto é realizado constantemente sem acompanhamento de profissionais de saúde ou informações, sendo preciso concluir o procedimento em pronto-socorro. Esses espaços não são seguros para aquelas que abortam, sendo constantes os casos de acusação e até agressão verbal ou física por parte das equipes de saúde para com as pacientes.
Entre as pessoas que sofrem de abortos espontâneos, o descaso não é diferente. São recorrentes relatos de mulheres que durante abortamentos espontâneos são negligenciadas e mesmo com dores (físicas e emocionais) foram deixadas para sangrar como forma de serem culpabilizadas. No final das contas, não importa se houve uma intenção ou se foi algo puramente fisiológico, a mulher é vista como errada em não cumprir a função de ser uma incubadora.
O luto pela interrupção da gestação não é permitido. Em casos de abortamento, mulheres que trabalham em regime formal de direitos têm direito a apenas 14 dias de licença do trabalho, desde que apresentem atestado médico; homens têm direito de até 20 dias e apenas em caso de fetos natimortos. Dias para elaborar uma perda.
Abortar é um ato comum e ao mesmo tempo solitário. A forma com que o país lida com o tema leva muitas a ser presas ou a morrer por buscar autonomia. Ou serem violentadas pelo fato de o próprio corpo não prosseguir com gestações inviáveis. As pautas morais dos grupos que se posicionam contra o aborto, auto intitulados pró-vida, é contrária à vida das mulheres. Prendem-nas, matam-nas, violentam-nas, silenciam-nas.