Vigotski entre disputas e filtros ideológicos

Não podemos manter a reprodução de obras que passaram por um filtro ideológico norte-americano e que transformaram o pensamento de Vigotski em uma colcha de retalhos      

Por Vitória Regina
Colaborarou Leopoldo Neto e Norberto Liberator

“(…) aliás, toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas (…)” (MARX, 2008, p. 1080).

 

O interesse central deste texto é apresentar as distorções presentes nas obras de Lev Semionovitch Vigotski traduzidas para o Ocidente. A fim de exemplificar tal problemática, analisaremos duas de suas principais obras: A formação social da mente e a A construção do pensamento e da linguagem. Os dois livros serviram como porta de entrada para os educadores e psicólogos na produção teórica de Vigotski. Todavia, há de se questionar qual apropriação foi realizada.

Neste sentido, para compreendermos o que foi retirado da obra, o que foi distorcido e o por qual razão, devemos estar a par de quem foi Vigotski, o que o autor defendia e o qual era o contexto político do momento em que essas traduções chegaram à América.

Em meados da década de 1980, em plena Guerra Fria, o autor bielorrusso começou ser traduzido para o Ocidente. As obras que chegaram ao continente americano foram, de modo geral, traduzidas do russo para o inglês e do inglês para o português. Entretanto, no movimento de tradução inglês-português partes importantes das obras foram deixadas de lado. Essas ‘’partes importantes’’, como se pode imaginar, foram a censura e a retirada de menções a Marx, Engels, Lênin e ao marxismo de maneira geral.

As obras publicadas nos Estados Unidos – e que, posteriormente, serviriam de base para as publicações no Brasil – foram exaustivamente modificadas. A terra do Tio Sam teve como finalidade a assepsia teórica, política e ideológica do autor. O projeto era basicamente desvincular Vigotski do materialismo histórico-dialético, do marxismo, do compromisso com a União Soviética e da construção de uma nova sociedade.

No entanto, antes de nos aprofundarmos sobre as problemáticas em nosso continente, é importante deixar registrado que Vigotski também teve alguns problemas na União Soviética. Algumas de suas obras só vieram a público décadas após sua morte, graças à troika – Alexander Romanovich Luria e Alexis Nikolaevich Leontiev – e por alguns outros alunos e alunas de Vigotski.

Somente com a morte de Stalin, em 1953, com o degelo vagaroso e inseguro, A.N.Leontiev e A.R.Luria puderam empreender esforços para a publicação das obras adormecidas de seu colega. Segundo as recordações de René Zazzo, psicólogo francês, foi nesse período que A.N.Leontiev o procurou com a ideia de editar as obras de Vigotski no exterior. A.N.Leontiev partia do pressuposto de que os editores soviéticos poderiam seguir o exemplo e passar a editar as obras de seu conterrâneo, reabilitando assim o seu nome na psicologia soviética (PRESTES, 2010, p. 59).

A intenção de Vigotski não era a de criar e de desenvolver mais uma abordagem dentre as centenas existentes no escopo da psicologia, mas construir uma psicologia geral que pudesse assumir seu caráter científico. A temática da crise na psicologia exposta por Vigotski, no entanto, não será abarcada neste texto.

Quando trabalhamos com a teoria psicológica que Vigotski ajudou a construir, ou seja, a teoria histórico-cultural, devemos levar em consideração a importância da contextualização de toda e qualquer obra. Temos de considerar que as teorias são desenvolvidas conforme cada momento histórico permite, assim como compreender que o modo de produção e de reprodução da vida são importantes para a compreensão de tudo que é produzido.

Sendo assim, para que possamos entender a totalidade teórica de Vigotski, temos de considerar que se trata de um pensador que viveu e que produziu intelectualmente em um modelo de sociedade calcado em um modo de produção e reprodução da vida que, por ora, não existe mais.

Diferente do que se observa atualmente em alguns setores da psicologia, a teoria psicológica que Vigotski ajudou a desenvolver não tinha um caráter mercadológico, tampouco trabalhava para que os sujeitos se tornassem passivos ou se resumissem a uma deficiência, como pode ser lido neste texto publicado pela Revista Badaró sobre a Escola de Zagorsk e o trabalho dos psicólogos e educadores soviéticos em prol da emancipação humana.

Vigotski foi, conforme também concorda Tuleski (2008), ‘’a expressão da luta dos homens para deixarem de ser o que são (p. 22)’’ Logo, qualquer tentativa de ‘’limpar’’ a teoria de Vigotski de suas posições político-ideológicas é vulgarizar o conhecimento e o arcabouço teórico-metodológico do autor.

As traduções que chegaram ao Brasil até o final da década de 1990, são resultados de traduções realizadas diretamente de obras publicadas nos Estados Unidos e com toda fragmentação anteriormente mencionada. Contudo, algumas mudanças ocorreram a partir do início do século XXI, principalmente graças à Editora Martins Fontes, que passou a traduzir as obras diretamente do russo e em sua integralidade. Recentemente, a editora Expressão Popular também contribuiu para a disseminação de Vigotski, ao traduzir do russo a obra Imaginação e criação na infância.

A obra vigotskiana passou a ser estudada nas universidades brasileiras entre as décadas de 1980 e 1990. Os livros A formação social da mente e Pensamento e Linguagem deram popularidade ao teórico nos cursos de Pedagogia e Psicologia. Entretanto, por motivos já expostos, o que se lê nessas primeiras publicações não são traduções literais, mas um apanhado das ideias centrais do autor.

Diante das problemáticas envolvendo as traduções, bem como a popularização de Vigotski, compartilhamos do mesmo questionamento realizado por Tuleski (2008):

O que de fato tem sido compreendido na teoria de Vygotski para estar tão em evidência na atualidade? Será que uma teoria, com base marxista e de cunho revolucionário, teria uma aceitação tão ampla, a ponto de institucionalizar-se nos currículos, se houvesse uma compreensão profunda do sentido histórico de seus conceitos? (TULESKI, 2008, p. 25).

Os textos escritos pelo autor puderam ser lidos em português e na íntegra graças às traduções do espanhol e dos originais em russo. Sobre a retirada proposital de passagens ‘’polêmicas’’ ou menções ao marxismo, Tuleski (2008, p. 30) comenta que:

No prefácio de Pensamento e Linguagem os próprios tradutores advertem que ”uma tradução literal não faria justiça ao pensamento de Vygotski”. Assim, chegaram ao consenso de que a repetição excessiva de ”certas discussões polêmicas” teria pouco interesse para o leitor contemporâneo e ”deveriam ser eliminadas, em favor de uma exposição mais clara” (VYGOSTKY, 1989, xiii). Explicam, ainda, que a simplificação teve o objetivo de tornar mais claro o estilo de Vygotski e que embora a tradução compacta possa ser encarada como uma versão simplificada do original, no entender dos tradutores, a condensação aumento a clareza e legibilidade do texto. 

Além disso, o que antes era Pensamento e Linguagem passou a ser A construção do pensamento e da linguagem e ganhou 60% a mais em páginas. A primeira publicação do livro supracitado foi

feita a partir das traduções norte-americanas em final da década de 1980 e possuía um total de 135 páginas, enquanto que a última, realizada diretamente dos originais em russo possui 496 páginas, sendo que ambas possuem a mesma estrutura e quantidade de capítulos. (TULESKI, 2008, p. 31).

Já o livro A formação social da mente tem seu resultado fragmentário destacado no prefácio da obra brasileiras, onde os organizadores destacam que o que se encontra ali é uma síntese, um resumo das principais ideias do psicólogo soviético e reconhecem que

alguns capítulos “foram elaborados a partir de Instrumento e símbolo” (VIGOTSKI, 1999, p. XIII); outros extraídos de alguns trabalhos importantes de Vigotski como, por exemplo, Istoria razvitia vischirhpsirritcheskirh funktsii (A história do desenvolvimento das Funções Psíquicas Superiores) e Umstvennoie razvitie detei v protsesse obutchenia (O Desenvolvimento Mental das Crianças e o Processo de Aprendizado). Os organizadores explicam também que fazem uma junção de obras do pensador russo que, originalmente, estão separadas e pedem ao leitor que não leia o livro como uma tradução literal, mas sim editada “da qual omitimos as matérias aparentemente redundantes e à qual acrescentamos materiais que nos pareceram importantes no sentido de tornar mais claras as ideias de Vygotsky” (Idem, p. XIV). Em seguida, já no final do prefácio, explicita-se uma problemática ética. Os organizadores do volume deixam claro que tinham perfeita noção de que, “ao mexer nos originais poderiam estar distorcendo a história”. Porém, preferem fazê-lo e consideram que a simples referência a essa ação absurda deixa-os livres de qualquer crítica, pois, como eles mesmos dizem, “deixando claro nosso procedimento e atendo-nos o máximo possível aos princípios e conteúdos dos trabalhos, não distorcemos os conceitos originalmente expressos por Vygotsky” (PRESTES, 2010, p. 156 apud VIGOTSKI, 1999, p. XV; grifos no original).

Os editores afirmam que ao editar os textos originais e publicá-los desta maneira poderiam acabar ‘’distorcendo a história’’ e mesmo com a possibilidade de distorcer historicamente a obra, permaneceram com a proposta de retirar conteúdos e referências a fim de ‘’facilitar’’ o atendimento. Outra problemática embutida nesta questão é que para Vigotski ‘’as palavras são construções históricas, seu significado não é abstrato e eterno, mas varia conforme variam as relações entre os homens’’ (TULESKI, 2008, p. 32).

Ao desenvolver uma teoria psicológica com base no materialismo histórico-dialético, Vigotski ressaltou uma de suas preocupações centrais: não elaborar uma ciência pautada na fraseologia. Ou seja, o autor não queria fazer recortes das obras de Marx e Engels e tentar ‘’encaixá-las’’ na psicologia, mas sim utilizar o método para construir o novo. Diante disto, é relevante destacar que o que acontece nessas traduções fragmentadas é exatamente o que Vigotski temia ao formar sua teoria.

Nesse sentido, ao decidirmos estudar os materiais do teórico referenciado, não podemos deixar de lado sua visão de mundo e tampouco ignorar que a teoria foi desenvolvida posteriormente a uma revolução de cunho socialista. Não devemos excluir o fato de que o pensamento marxista influencia toda a obra e prática de Vigotski – ou seja, o modo como este entendia o sujeito e todo o seu desenvolvimento cultural e psíquico.

Sendo assim, levando em consideração as distorções e as disputas ideológicas brevemente apresentadas ao longo deste texto, temos de nos questionar qual Vigotski tornou-se tão popular. O teórico que ganhou espaço e permanência nos currículos das universidades brasileiras é o autor recortado e editado com uma aparência – às vezes literal, considerando que até edições em fotos de Vigotski foram realizadas – ocidental? Ou o teórico soviético que tinha compromisso com a transformação da sociedade e o desenvolvimento de um novo homem?

Tuleski (2008 p. 48 – grifo nosso) reafirma que

retirar de seus textos as referências a Marx, Lênin ou Trotsky é suprimir referenciais importantes para a compreensão de sua teoria. Ignorar sua formação marxista e seu envolvimento teórico prático com o projeto coletivo de construção do comunismo significa abstrair suas ideias das lutas vividas por ele e que lhe dão significado. No entanto, grande parte do material escrito sobre Vygotski relega a segundo plano seu envolvimento com o comunismo e sua formação marxista, aparecendo brevemente em alguns resumos biográficos parcas citações sobre os locais em que trabalhou e autores em que se baseou, sem estabelecer relações com seus postulados teóricos.

Para terminar, é importante que todas as pessoas que estejam interessadas em iniciar ou aprofundar o entendimento da obra vigotskiana não o façam a partir traduções, livros, artigos ou comentadores que ignoram esta historicidade perdida. Além disso, ainda em relação à historicidade oculta, é válido que trabalhemos com intenções de recuperá-la e que possamos trabalhar com o Vigotski que desenvolveu sua teoria psicológica com bases marxistas.

Não podemos, neste sentido, continuar reproduzindo as obras que passaram por um filtro ideológico norte-americano e que se transformaram em uma colcha de retalhos.          

 

REFERÊNCIAS

MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

TULESKI, S. Vygotski: a construção de uma psicologia marxista. Maringá: Eduem, 2008.

Vygotski, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

PRESTES, Z. P. Quando não é quase a mesma coisa. Análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil: repercussões no campo educacional. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília-DF, 2010.

Vitória Regina

Colunista

Marxista e psicóloga em formação. Debate política, psicologia e cultura.

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