Pantanal: entre chamas e carvão

Em meio à emergência por queimadas crescentes, barragens de mineradoras como Vale e MMX na região preocupam pelo risco de rompimento e má fiscalização

Por Adrian Albuquerque, Guilherme Correia, Mylena Fraiha e Norberto Liberator
Ilustrações por Fábio Faria e Marina Duarte

Os incêndios na região do Pantanal, que já destruíram quase 3,5 milhões de hectares de sua vegetação, são a demonstração máxima da devastação ambiental naquele bioma. No entanto, estão longe de ser a única grande preocupação em relação à maior planície alagada do mundo, na qual a atenção de empresas do ramo da mineração está virada há pelo menos duas décadas e preocupa pelo risco ambiental.

Em 2015, conforme publicado pelo jornal O Globo, duas barragens localizadas no município de Corumbá, que detém maior parte do bioma pantaneiro em Mato Grosso do Sul, corriam risco de se romper e causar danos ambientais à bacia do Rio Paraguai, como o secamento de água. Ambas em nome da empresa Mineração Urucum, pertencente à Vale.

No total, são 19 barragens de resíduos sólidos na região do Pantanal. Responsáveis por reter rejeitos e águas para evitar maiores complicações ambientais, a maior parte é considerada menor e menos perigosa.

Outra delas, a Barragem Sul foi criada pela mineradora MMX, de Eike Batista, que se encontra atualmente em “recuperação judicial”. Além dessa, a “Gregório” estava registrada em nome da Mineração Corumbaense e detém 3 milhões de metros cúbicos de água.

À época, imagens obtidas por meio de satélites indicavam prováveis barragens de rejeitos feitas por empresas do ramo de mineração. A preocupação ocorre, por exemplo, na comunidade ribeirinha Antônio Maria Coelho, já que dentre diversos impactos causados pela ação de mineradoras estão, por exemplo, problemas respiratórios decorrentes da fuligem gerada pela queima de fornos.

“É um problema que há muito tempo se arrasta. Não se pode nem aproveitar captação da água por cisternas por causa disso”, explica o biólogo e diretor-presidente da Organização Não Governamental (ONG) Ecoa, André Siqueira. “A poeira do ferro se deposita na comunidade, é uma situação muito complicada, de muita insalubridade”.

O pesquisador cita que foram feitos estudos, durante a chegada das empresas de mineração na região, com o objetivo de promover diálogo. “Foi uma iniciativa nossa [da Ecoa], que construímos com terceiro e segundo setor, para mediar conflitos e resolver outras situações. Mas se não fosse a Covid-19, era para estar um ‘pouco mais acelerado’, porque duas audiências que seriam determinantes para conciliação disso foram canceladas nesse período”.

Desenvolvimento versus degradação 

As tentativas de implantar pólos de exploração mineral em regiões reconhecidas pela abundância de recursos naturais, como a Amazônia e o Pantanal, não são recentes. No caso das jazidas do Pantanal sul-mato-grossense, destaca-se a região popularmente conhecida como “Morraria do Urucum”, situada nos municípios de Corumbá e Ladário, próxima à linha internacional da fronteira Brasil-Bolívia. Dentre essas formações, estão a serra do Rabicho, Morro Grande, Serra de Santa Cruz, Morro da Tromba dos Macacos, Serra do Jacadigo e Morro do Urucum.

Logo, essa potencialidade seria reconhecida e cobiçada por inúmeras mineradoras regionais e até mesmo internacionais. Em meados de 2002, foi discutido um projeto que visava fixar um pólo minero-industrial em Corumbá-MS. Contudo, a proposta foi cercada por polêmicas e tensionamentos entre os setores econômicos e políticos da localidade. Por um lado, existia o discurso desenvolvimentista, apoiado, principalmente, pelo setor econômico da cidade. Em contrapartida, especialistas da área ambiental sinalizavam para possíveis problemáticas que afetariam tanto o bioma, como as populações ribeirinhas que viviam em comunidades próximas à região cobiçada pelas mineradoras.  

Com o objetivo de conscientizar a população, a Ecoa buscou uma alternativa para a disseminação de informações sobre a viabilidade do pólo minero-industrial na região pantaneira. “Nós fizemos um pequeno jornal chamado Repensar, que pretendia trazer os prós e contras dessa implantação; e, principalmente, mostrar os impactos que não eram evidenciados pelo discurso desenvolvimentista”, aponta a jornalista Patrícia Zerlotti, ex-integrante da Ecoa. 

Durante esse período, também existiam propagandas que destacavam apenas o desenvolvimento econômico da região, sem evidenciar as futuras problemáticas ambientais que afetariam a população. 

No entanto, o projeto não foi concretizado. Com a pressão das organizações socioambientais e com uma parte da população local, a implantação tomou um rumo vagaroso. Como explica a jornalista Patrícia Zerlotti, com a demora do processo, o setor financeiro da época direcionou os interesses em outros empreendimentos. “Eu acredito que essa pequena resistência foi o que retardou o processo. Com isso o mercado desacelerou. Só que mesmo assim, vemos que quem dita as regras do jogo é o mercado. Éramos como formiguinhas contra elefantes”, relembra. 

Na outra margem dessa história de disputas econômicas e exploração ambiental, estão as comunidades ribeirinhas que vivem no meio do Pantanal, como é o caso da Antônio Maria Coelho. 

Localizada na Morraria do Urucum, a 35 km de Corumbá, essa comunidade centenária é composta por 35 famílias. A população sofre com falta de água ocasionada pela carência de informação da ocupação humana, além do uso desenfreado por parte das empresas de mineração que atuam há anos na região.

Outro problema histórico vivenciado pela comunidade era a posse das terras. Com o surgimento das presença das mineradoras, houve uma pressão para a expulsão dos pequenos agricultores daquela localidade. Devido a isso, são poucos os moradores que possuem documentos que comprovem a posse das terras. 

De acordo com o site da Ecoa, a partir de uma parceria com outras ONGs, como a Paz, Natureza & Pantanal (PN&P), os moradores recebem orientações para conseguir, na Justiça, o direito de usucapião para a regularização das propriedades. Já a Embrapa Pantanal auxiliou a comunidade, na tentativa de aliar  a conservação e uso racional dos recursos naturais da região, em projetos de agricultura familiar e extrativismo.

Com o apoio das ONGs, a comunidade Antônio Maria Coelho se organizou politicamente em associação, e foram capazes de estabelecer diálogos com as empresas de mineração. Hoje a comunidade encontra-se mais estabilizada e as ações das organizações socioambientais estão direcionadas a outras problemáticas vividas na região. “A gente vai entrando em outras demandas e tudo mais. O cenário não era tão desastroso, quanto a barragem de rejeito, quanto a gente vem trabalhando com essa questão hídrica”, ressalta o pesquisador André Siqueira.

Fiscalização

No ano passado, no município de Brumadinho (MG), a barragem I da Mina de Córrego do Feijão, da mineradora Vale, rompeu no dia 25 de janeiro e deixou, em menos de meia hora, 270 vítimas de soterramento. A partir dessa tragédia, o papel de fiscalização dos governos foi colocado em cheque. 

“Mais recentemente, com Mariana e principalmente depois de Brumadinho, acho que houve uma ‘comoção nacional’. Com Brumadinho, isso [fiscalização] ficou mais evidenciado, e aí começou um estudo das barragens que têm ali na região”, comenta o atual Diretor-Presidente da Ecoa, André Siqueira.

No fim de janeiro do ano passado, o Ministério de Minas e Energia determinou que empresas responsáveis por barragens de rejeitos de mineração em todo o Brasil informassem, ao governo Federal, se medidas relativas à segurança das barragens haviam sido tomadas, com devida justificativa sobre a falta delas.

Apesar disso, o texto não especificava punição em caso de nada ser feito. Ao contrário: as empresas poderiam pedir “providências” ao próprio Estado.

Na tentativa de reduzir o sigilo sobre processos minerários, a Agência Nacional de Mineração (ANM) incentivou o segredo sobre esses documentos. O órgão, em resolução publicada na mesma semana, deixou de considerar sigiloso qualquer processo minerário, mas com vários poréns – mais um indiretamente relacionado ao caso de Brumadinho, mas assinada poucas horas antes da tragédia, aparentemente.

No mês seguinte, por meio da Secretaria de Geologia e Mineração, o Ministério baixou portaria prevendo, na prática, intervenção do governo junto à Agência, que deveria  encaminhar atos normativos relativos à regulação do setor, “de forma que possam ser avaliadas sua adequação, conveniência, oportunidade e pertinência temática, inclusive para fins das devidas correções que se fizerem necessárias pelo Ministério de Minas e Energia”. 

Depois, o Ministério voltou atrás, alegando que o texto anterior “suscitou interpretações descontextualizadas de seu real propósito”. A nova determinação é para que a ANM encaminhe diretamente para o gabinete do secretário de Geologia e Mineração “os atos normativos relacionados às políticas públicas de competência do Ministério de Minas e Energia”.  Não há qualquer outra consideração que possa ser considerada uma intervenção.

Sete meses depois da tragédia em Brumadinho, o Ministério criou o Comitê Técnico de Segurança de Barragens de Rejeitos de Mineração (CTBMin), um grupo de caráter permanente, com objetivo de supervisionar ações relativas à segurança das barragens de mineradoras. 

Antes disso, foi concedido, às empresas do setor, um alívio no prazo para desativar algumas das barragens construídas ou ampliadas com risco de rompimento. Na época, o setor ganhou dois meses para realizar adaptações, mas o prazo para que fossem desativadas passou de 15 de agosto de 2021 para o ano seguinte, com alguns casos podendo até ser entregue em dezembro de 2027. “Tem  um ano que foi a última vez que mexemos com isso. Isso ‘esfriou’”, aponta Siqueira. 

A nível regional, o Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul) é responsável pela fiscalização das barragens, e tem portaria mais recente, publicada em janeiro deste ano, a respeito dos riscos ambientais que poderiam ser causados pelas mesmas.

No Pantanal, a Vale sinalizou rotas de fuga e entregou equipamentos de emergência, de acordo com Siqueira. “E parece-nos que num eventual rompimento, o risco ali é muito menor que tantas outras que foram ali encontradas, não passaria por cima da comunidade em si. Foi feito sim um plano, não sei se a contento”.

Em âmbito nacional, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) só publicou relatório de  segurança das barragens em 24 de setembro de 2020, quase dois anos após o rompimento em Brumadinho.

 

Mylena Fraiha

Mylena Fraiha

Editora-executiva

Jornalista e pesquisadora em comunicação. Possui interesse nas áreas de meio ambiente, política e direitos humanos, além de produções audiovisuais.

Norberto Liberator

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Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

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