O impacto da ‘RedBullização’ no futebol

Por Gabriel Neri e Mateus Moreira
Colaborou Norberto Liberator

Não é uma novidade que o futebol hoje é um negócio milionário, algo natural para uma prática tão popular. No entanto, em muitas situações, histórias de clubes são apagadas para servir de investimento para multinacionais. Dentre esses casos, o maior exemplo é a empresa de energéticos Red Bull. Há um enorme debate sobre os clubes-empresa serem ou não a solução para o futuro do esporte – por outro lado, tradições de décadas são simplesmente ignoradas.

O Bragantino, folclórico clube da cidade de Bragança Paulista, foi adquirido pela empresa austríaca em 2019. O clube alvinegro teve suas cores mudadas para o vermelho e o branco, e seu escudo passou a ser a logo da empresa com o nome “Bragantino” inserido na parte inferior da marca. O leão, seu mascote, foi aposentado e deu lugar ao touro vermelho da multinacional. 

No cenário europeu, o exemplo mais bem-sucedido é o do RB Leipizg, da Alemanha, fez sua melhor campanha em 11 anos chegando à semifinal da UEFA Champions League, na qual foi eliminado diante do Paris Saint-Germain. 

Associação esportiva e clube-empresa

Para se compreender como a empresa austríaca começou a criar sua franquia de clubes de futebol ao redor do mundo, é necessário entender os conceitos de associação esportiva e de clube-empresa. Primeiro, a sociedade está dividida em três setores: o Estado, o mercado e a sociedade civil.

O Estado consiste em prefeituras, governos estaduais e federal, além de órgãos como secretarias e ministérios. O segundo setor – o mercado – consiste nas empresas privadas de bens e serviços. Já na sociedade civil, que pode ser considerada como uma intersecção dos outros dois setores, há as Organizações da Sociedade Civil (OSCs), que são Pessoas Jurídicas (PJs) sem fins lucrativos e com o objetivo principal no atendimento da demanda social.

No Brasil, a maioria dos clubes se encaixa na categoria de associações esportivas, que normalmente surgem de união entre pessoas para a prática esportiva e não têm donos. Para administrar a associação, ela conta com uma composição básica de associados, diretoria, conselho fiscal e conselho deliberativo. Embora não tenham como objetivo o lucro, as associações têm que gerar projetos e ações para arrecadar e se manter. A diferença desse lucro para o de um clube-empresa é que ele é reinvestido na própria instituição.

Há cerca de 20 clubes-empresa no país, os principais são o Botafogo-RJ; Botafogo-SP; os clubes da Red Bull, Bragantino e RB Brasil (esse atualmente é usado como um time B); e o Tombense-MG. Basicamente, clube-empresa cumpre o mesmo papel das associações; a diferença está na estrutura administrativa, que varia de clube, e no lucro, que não necessariamente é destinado à instituição. Sendo assim, pertence não ao terceiro setor e sim ao segundo, das empresas privadas.

‘RedBullização’

O Red Bull Salzburg, inicialmente nomeado como SV Austria Salzburg, foi fundado em 13 de setembro de 1933 e é sediado em Wals-Siezenheim. O clube contava com diversos patrocinadores, antes de ser comprado pela Red Bull em 6 de abril de 2005. A empresa renomeou o clube e alterou suas cores. Os tradicionais violeta e branco deram lugar ao vermelho e branco. A empresa, consequentemente, mudou a administração do clube, que passou a ser declarado como “um novo clube sem história’’.

A Red Bull, inclusive, afirmou no site do clube que o mesmo teria sido fundado em 2005, mas foi obrigado a retirar, após reivindicação da Federação Austríaca de Futebol. No entanto, a empresa não seguiu completamente esses precedentes ao adquirir o clube MetroStars, da MLS, nos Estados Unidos. Apesar de ter batizado a equipe como Red Bull New York (sendo referido pela liga e pela mídia como New York Red Bulls), a fabricante de energéticos escolheu reconhecer a história do MetroStars. 

Fundado em 1995 como New York MetroStars, tendo sede em Nova Jersey, o clube foi comprado pela Red Bull em 9 de março de 2006. Inicialmente, o objetivo da empresa era a criação de uma equipe na cidade de Nova York, mas o custo de compra dos direitos do MetroStars, juntamente com a dificuldade em garantir um local para erguer um estádio na cidade, levaram a Red Bull a adquirir o clube e assumir o projeto de estádio, já existente, em Harrison, Nova Jersey. 

A Red Bull adquiriu, também, o SSV Markranstadt, time da quinta divisão alemã. A intenção era levá-lo para a Bundesliga (primeira divisão da Alemanha) em um prazo de 10 anos, mas conseguiu seu objetivo antes do estipulado, tendo conquistado o acesso após terminar em segundo lugar na 2. Bundesliga, pela temporada 2015/16. Inicialmente, a Red Bull investiria cerca de 100 milhões de euros no clube, ao longo de 10 anos. 

O clube foi nomeado como RasenBallsport Leipzig. Em comparação com o nome de suas outras filiais, se difere graças ao estatuto da Associação Alemã de Futebol, que predefiniu que patrocinadores só podem fazer parte da identidade de um clube, caso sejam donos do mesmo por 20 anos, ou mais (como é o caso do Bayer Leverkusen). 

Outra equipe que fez parte da franquia foi a Red Bull Ghana. A equipe de futebol de Gana, sediada na cidade de Sogakope, foi fundada em 2008, mas extinta em 2014. O Red Bull Ghana, inicialmente, surgiu como uma academia de futebol. Iniciou suas atividades profissionais apenas em 2010, quando disputou a Division One League, que equivale a “série B ganense”. 

O clube participou pela primeira vez da Ghanaian FA Cup na temporada 2011/12. Em agosto de 2014, a equipe foi extinta e o clube foi fundido com o West African Football Academy SC, academia ganense do tradicional clube holandês Feyenoord Rotterdam. 

No Brasil, a empresa conta com mais dois clubes de sua franquia. O mais antigo deles, o Red Bull Brasil, sediado na cidade de Campinas, foi fundado em 19 de novembro de 2007. O clube, que utiliza o Estádio Moisés Lucarelli para sediar os seus jogos, é um dos representantes da cidade de Campinas no futebol paulista, além de Guarani e Ponte Preta. 

A equipe fez sua estreia na Série B do Campeonato Paulista em abril de 2008, diante do Sumaré. Em seus 30 primeiros jogos, venceu 13, empatou 10 e perdeu 7, marcando  54 gols e sofrendo 27. O Red Bull Brasil conquistou o Campeonato Paulista Série A3 de 2010 e subiu para a Série A2. O time também foi vice-campeão da Copa Paulista de 2010. 

A estreia na divisão principal do Campeonato Paulista veio em janeiro de 2015. A equipe chegou às quartas de final e terminou em 6º lugar na competição, tendo sete vitórias, três empates e cinco derrotas, com 20 gols marcados e 22 sofridos. 

O Red Bull Brasil estreou na Copa do Brasil em 2016, quando foi eliminado pelo América Mineiro na primeira fase. Em 2020, por conta da compra do Bragantino pela mesma empresa, o Red Bull Brasil passou a ser o ‘time B’ da marca, e disputou a Série A2 do Campeonato Paulista com o elenco sub-23. 

O Red Bull Bragantino, clube sediado em Bragança Paulista, foi originalmente fundado como Clube Atlético Bragantino, em 8 de janeiro de 1928, tendo o preto e o branco como suas cores oficiais. O ápice de sua história ocorreu há cerca de 30 anos, quando foi campeão paulista (1990) e vice-campeão brasileiro (1991). 

A mudança de Clube Atlético Bragantino para Red Bull Bragantino ocorreu em março de 2019, quando se associou à empresa, tendo como objetivo inicial chegar à primeira divisão do Campeonato Brasileiro. O acordo também inclui reformas no Estádio Nabi Abi Chedid. O clube não só garantiu o acesso, como foi campeão da Série B do Campeonato Brasileiro, concluindo seu objetivo inicial.

City Group

O City Football Group (CFG) vem na mesma vertente que os clubes administrados pela empresa austríaca; no entanto, a abordagem tem algumas diferenças em relação à Red Bull. A história do CFG se confunde com a do Manchester City, que seria a ‘matriz’ dos demais clubes. Outra diferença para os touros é que o grupo está presente em cinco das seis confederações de futebol existentes: a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), a União das Associações Europeias de Futebol (UEFA), a Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe (Concacaf), a Confederação Asiática de Futebol (AFC) e Confederação de Futebol da Oceania (OFC).

O CFG tem partes nas ações ou é dono total de nove clubes. O primeiro da história foi o Manchester City, do Reino Unido, no ano de 2008; com isso, veio uma nova era para o time do norte inglês. Após a aquisição da equipe e o bilionário investimento ao longo desses 12 anos, o clube azul celeste, que era apenas um coadjuvante se comparado ao rival Manchester United, elevou o seu patamar. 

Foram quatro títulos do Campeonato Inglês, duas Copas da Inglaterra, cinco Copas da Liga Inglesa e três Supercopas da Inglaterra. No entanto, não obteve conquistas no cenário internacional até o momento, tendo sua melhor campanha na UEFA Champions League na temporada 2015/2016, na qual chegou à semifinal e caiu diante do campeão Real Madrid.

O segundo clube do CFG é o New York City, dos Estados Unidos. Com a crescente da Major League Soccer (MLS), houve o interesse do grupo em ter uma filial estadunidense. Um dos motivos era a ascensão da Red Bull no país, com o RB New York.  Em agosto de 2012, juntamente com a equipe de beisebol New York Yankees, foi anunciada a criação do New York City Football Club.

O terceiro foi o Yokohama F-Marinos, do Japão, em parceria com a Nissan, em 2014. Em 2017, o Girona, da Espanha, também foi adquirido, sendo o segundo clube europeu do grupo, mas que diferentemente do Manchester City, joga a segunda divisão. Além desses, há ainda o Sichuan Jiuniu, da China, o Mumbay City, na Índia, e o Melborne City, da Austrália. 

O mais recente foi o Montevideo City Torque, antigo Club Atlético Torque, do Uruguai. A equipe foi comprada em 2020 e joga a primeira divisão. Um dos principais objetivos para o time sul-americano é que ele revele atletas para a equipe principal, o Manchester City. Assim como os da RB, os clubes do City Group sofrem com a padronização, mas cada um tem seu escudo e cores; com um olhar mais adaptado ao contexto de cada clube, nem todos são padronizados. 

Efeitos

Com o crescente investimento de marcas tornando os clubes verdadeiras filiais e com os objetivos principais de conseguir lucro através do futebol, podemos observar efeitos a curto, médio e longo prazo. Os principais desses efeitos são a perda de identidade do clube com sua cidade e torcida, a mercantilização do futebol e a perda de sua essência.

O primeiro efeito está relacionado à identidade do clube. A maioria das equipes brasileiras e sul-americanas surgiu da classe operária e com uma relação local com sua cidade de origem. No caso do Clube Atlético Bragantino, a agremiação surgia como um movimento da cidade para ter algum clube. Ao longo do tempo, passou a ser uma das representações do interior paulista em cenário nacional, chegando ao título estadual e ao segundo lugar no Brasileirão, em ambos os casos deixando para trás alguns dos principais clubes do Brasil. 

Com a mudança para o atual RB Bragantino, fatores que marcam a identidade de um clube, como o escudo, as cores e as pinturas do estádio foram mudados. O preto e branco deu lugar ao vermelho da marca da Áustria. O escudo, que antes tinha listras verticais alvinegras, hoje tem a logo da marca. O simpático leão deu lugar ao padronizado e forçado touro.

Outro ponto visto é o uso do futebol para obter o lucro através dos investimentos das grandes marcas. Diferente das associações esportivas, em que o clube, na teoria, tem seu lucro destinado para a própria instituição, nos clubes-empresa, o dono pode ficar com as receitas geradas.

Além disso, por ser uma empresa, pode haver transferência de sede, como aconteceu com o mexicano Monarcas, em junho deste ano, que mudou para uma cidade a 700 km de distância e agora se chama Mazatlán. À época, houve uma grande revolta da torcida. No Brasil, o caso mais conhecido é o do Grêmio Barueri Ltda., que se tornou Grêmio Presidente Prudente Ltda.

Há ainda a questão de torcida: muitos dos cantos vindos das arquibancadas envolvem a história da equipe, suas cores, mascote, rivalidades locais e títulos, e representam a união entre o povo e seus atletas. Muitos torcedores tatuam alguns desses fatores em seus corpos, para eternizar sua paixão. No momento em que uma marca como a Red Bull muda totalmente a identidade de uma equipe, faz com que se quebre esse laço entre torcida e clube. 

Por fim, com a ‘redbullização’, a essência do futebol e o pacto que os torcedores e torcedoras firmam com seu clube pode ser quebrado por diversos fatos, como uma mudança completa de escudo, uma empresa que vem para criar um novo clube apagando totalmente as lembranças do que já foi vivido e com uma transferência a uma cidade nova apenas para obter lucro.

Gabriel Neri

Repórter

Estudante de jornalismo, amante de futebol sul-americano e da América Latina.

Mateus Moreira

Colunista

Estudante de jornalismo, apaixonado por futebol e amante de política.

Norberto Liberator

Editor-chefe

Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

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