Sangue, suor e nitrato: a luta pela preservação no cinema brasileiro
- 19 de agosto de 2020
A destruição da Cinemateca Brasileira pelo Governo Federal traz à luz um problema secular: os problemas na preservação do cinema brasileiro. Muito da produção cinematográfica do país já se perdeu pelas dificuldades de conservação, e uma série de produções hoje consideradas clássicas já tiveram a perpetuação de sua existência por um fio
Por Igor Nolasco
Ilustração por Norberto Liberator
Tchecoslováquia, 1956. Nas frias veredas da Cortina de Ferro, era exibido um filme brasileiro intitulado “Rio, 40 Graus” no Festival de Cinema de Karlovy Vary. Nelson Pereira dos Santos, paulistano de 28 anos de idade, recebe pela produção carioca o Prêmio Jovem Realizador. Era seu primeiro longa-metragem.
Rio, 40 Graus” fez história no cinema brasileiro. É tido como o filme que deflagrou o movimento do Cinema Novo. Apesar de sua importância histórica, quando surgiu a necessidade de restaurar o longa e produzir a partir dele cópias de exibição, para que essa parte importante da história do cinema nacional pudesse ser disseminada, vista e debatida por um maior número de pessoas, não foram encontradas, no Brasil, matrizes do filme que pudessem ser copiadas. (A matriz, para um filme, seria um negativo a partir dos quais pode ser feita uma cópia positiva por meio por dois processos possíveis, conhecidos como “ampliação” e “cópia contato”) O internegativo que serviu como matriz para cópias de exibição do filme de Nelson Pereira dos Santos, que hoje está disponível até mesmo em DVD, veio nada mais, nada menos que da Tchecoslováquia. A cópia levada para a exibição no Festival de Karlovy Vary salvou uma parte da história do cinema brasileiro. A história pode parecer improvável, inacreditável. Não é nem de longe, contudo, a única no que se refere a filmes nacionais que só existem para serem vistos até hoje graças a agentes externos.
Nem mesmo o cineasta mais famoso da história do país esteve imune a esse fenômeno. Quando surgiu a empreitada de se realizar uma cópia restaurada de “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, de Glauber Rocha, não foram encontradas matrizes aptas à tarefa no Brasil, por mais que o filme tivesse sido anteriormente lançado em VHS. O longa é uma co-produção com a França, e foi o país europeu que cedeu a matriz para que fossem geradas cópias de exibição.
Se diretores canônicos, como Glauber e Nelson Pereira – que são referências quando se fala e pensa acerca de cinema brasileiro – já são objeto desse tipo de situação, as obras de cineastas menos afortunados pela memória canônica passam por percalços ainda piores.
Foi o caso do diretor, roteirista, ator e produtor José Mojica Marins, conhecido nacional e internacionalmente pelo personagem Zé do Caixão. Mais lembrado pelos filmes protagonizados por sua criação mais famosa, Mojica detém uma filmografia extensa. Alguns de seus filmes só existem para serem assistidos hoje porque, nos anos 1990, uma distribuidora norte-americana intitulada Something Weird Video fez cópias legendadas em inglês desses longas em VHS, para que eles fossem vendidos nos EUA. É o caso de “Perversão” (1979) e “Quando os Deuses Adormecem” (1972) – continuação de um dos filmes mais conhecidos do cineasta, “Finis Hominis” (1971). São cópias com legendas embutidas em inglês e empobrecidas pela qualidade do VHS. No entanto, os filmes só existem hoje graças à Something Weird Video. Sem ela, estariam como algumas outras produções de Mojica, que desapareceram, perdidas para sempre.
Existe uma quantidade imensa de filmes perdidos para sempre no que se refere ao cinema brasileiro. Filmes importantes para a história de nossa cinematografia, como “Favela dos Meus Amores” (1935), de Humberto Mauro – tido como um dos exemplos mais antigos entre produções que exploram a vida nas favelas carioca – e “Moleque Tião” (1943), de José Carlos Burle – longa responsável por alçar o então iniciante Grande Otelo ao estrelato. A perda desses e de tantos outros filmes da cinematografia brasileira foi causada por diversos fatores, como descarte das distribuidoras após achar que não seria necessário guardá-los, incêndios e enchentes nos acervos que os guardavam e deterioração das cópias por más condições de armazenamento. Boa parte da produção relativa ao cinema mudo brasileiro, por exemplo, é considerada perdida. Mesmo “Acabaram-se os Otários” (1929), de Luis de Barros – tido como o primeiro filme brasileiro sonoro, com falas – está perdido. Tudo o que se tem dele hoje é uma reconstituição de alguns minutos, feita pelos laboratórios LIA e LUPA, da Universidade Federal Fluminense, através de fotografias e breves trechos do filme que foram guardados por Jurandyr Passos Noronha, cineasta que também é um nome fundamental no que se refere a preservação e memória no cinema nacional.
Alguns outros nomes formam o compêndio de brasileiros que lutaram e ainda lutam pela preservação da história do nosso cinema. No Rio de Janeiro, uma referência no assunto é Hernani Heffner, que durante vinte anos atuou como conservador chefe da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio e assumiu na última semana a gerência da instituição, de acordo com o jornal O Globo. Um depoimento de Hernani para o curta-metragem “Que Cavação é Essa?” (2008), de Luis Rocha Melo e Estevão Garcia, esclarece uma verdade inconveniente acerca da preservação de filmes no Brasil:
“Vai chegar um momento em que não sei se a gente vai poder dar conta desse montante [de filmes no acervo da Cinemateca do MAM], e vamos começar a perder obras simplesmente por causa do tempo. Isso é uma bomba-relógio de enormes consequências culturais, porque é um patrimônio histórico que se perde. Se o desconhecimento da história do cinema brasileiro já é grande hoje em relação ao passado remoto, ele também vai ser grande daqui a 20, 30, 40, 50 anos, em relação ao nosso presente, ao momento atual.
O acervo fílmico da Cinemateca do MAM é composto por uma quantidade robusta de todos os tipos de mídia que comportam produções em longa, média e curta-metragem: arquivos digitais, DVDs, Blu-Rays, fitas de VHS e Betamax e principalmente rolos de película 16 e 35mm. Arquivos digitais, os mais comuns na atualidade, dão a sensação de segurança, mas são efêmeros e necessitam de uma série de backups para que sua existência material possa perdurar de forma segura. A película exige algumas condições em seu armazenamento, como um ambiente constantemente refrigerado. Isso, naturalmente, faz com que as instituições dedicadas a preservação precisem de um orçamento mínimo para sustentar essas condições. Um dos motivos para isso está na chamada “síndrome do vinagre” – quando a película não está nas condições ideais, ela começa a se deteriorar e exalar um odor avinagrado, tão conhecido entre quem trabalha com conservação de filmes ou simplesmente frequenta os arquivos e cinematecas.
Outra instituição brasileira de renome nesse sentido é a Cinemateca Brasileira, fundada por Paulo Emílio Salles Gomes e localizada em São Paulo. Paulo Emílio, militante, professor, crítico de cinema, teórico e entusiasta do cinema brasileiro, foi herdeiro da tradição de conservação e cineclubismo de Henri Langlois, criador da Cinemateca Francesa. Com sua preocupação em preservar a produção de filmes do país e também em estabelecer um espaço para exibições e debates, concebeu o que hoje é o maior acervo cinematográfico da América Latina.
2020 está sendo um ano devastador para a Cinemateca de Paulo Emílio. Sem receber o repasse orçamentário anual de R$ 14 milhões do Governo Federal, a Associação Roquette Pinto, que então era responsável pela gestão da Cinemateca, precisou recorrer a brigas na justiça para renovações contratuais. O desfecho foi trágico: segundo a revista Carta Capital, a Roquette Pinto demitiu 41 funcionários da instituição sob alegação de que não teria como continuar pagando o corpo técnico da mesma, e cedeu as chaves do prédio a uma secretaria especial de Cultura do Governo Federal.
A demissão em massa foi o apogeu de uma espiral de maus momentos pelos quais a Cinemateca passou ao longo do ano. Há muito o Governo Federal já vinha tentando tomar de assalto a gestão da instituição. O maior acervo fílmico da América Latina virou até mesmo objeto de barganha no meio da odisseia política de Regina Duarte. A atriz foi afastada das funções de secretária da Cultura pouco depois de dar declarações infames à CNN Brasil acerca da omissão da secretaria em se pronunciar sobre o falecimento de artistas brasileiros, como Rubem Fonseca e Aldir Blanc, durante a pandemia de Covid-19. Após sua saída do cargo, o Governo Federal avaliou a criação de um posto para ela à frente da Cinemateca, espécie de “prêmio de consolação”. É dessa maneira que os governantes do país enxergam uma instituição como a Cinemateca Brasileira. Apesar da promessa, o novo cargo de Duarte foi descartado alguns dias após as primeiras especulações.
A preservação é um problema já secular para o nosso cinema. Tendo em vista governos que sistematicamente parecem ter uma intenção de demolir instituições basilares para a memória cultural do país, a situação torna-se ainda mais instável. Não trata-se de minimizar a cultura, por mais que algumas falas por parte do presidente e de seus asseclas possam causar essa impressão. Minimizar seria não se importar, não saber o valor da cultura. Sabem, e muito bem.
A cultura de um povo é sua memória. É o registro de sua identidade coletiva, de sua expressão artística, do que compõe suas manifestações musicais, literárias, pictóricas, audiovisuais. Um povo que ama sua cultura é um povo que se entende melhor e entende melhor o país em que vive. Por isso, governos que querem instrumentalizar a população para sua própria agenda buscam alienar o povo de sua própria cultura. Um povo que não conhece a própria história é um povo que está suscetível a consumir conteúdo (majoritariamente estrangeiro) de forma pasteurizada, acrítica e a acreditar em qualquer tipo de discurso oficial.
Manter viva a história do cinema brasileiro é manter viva a memória de milhares de pessoas – de artistas, de técnicos, de produtores e de espectadores – que estiveram presentes ao longo de mais de um século de cinema brasileiro. É manter viva a memória de mais de um século de uma manifestação cultural nacional. É preservar uma parte valiosa da nossa própria história.
Cineastas de renome do cinema dos EUA e da Europa ocidental serão lembrados para sempre, pois o cinema deles será lembrado para sempre. Investimentos públicos e privados garantiram a restauração, a telecinagem a digitalização dos filmes desses autores bem como sua distribuição em todo o mundo. O cinema brasileiro não dispõe da mesma sorte.
Caso a memória de nossa cinematografia não seja preservada, filmes e autores vão desaparecer como poeira ao vento. Orson Welles vai ficar, Nelson Pereira sumir. Roger Corman irá perdurar, Mojica Marins se esvair. Todos os cineastas que não foram absorvidos pelo cânone da história do cinema brasileiro de forma unânime, ou que simplesmente não tiveram o misto de investimento e sorte em ter os seus filmes preservados e digitalizados, terão seus esforços apagados e esquecidos.
Isso é passar uma borracha sobre parte da história de nossa cultura, com todas as implicações decorrentes disso (e a demissão de todo o corpo técnico da Cinemateca Brasileira é, no momento, uma das mais dolorosas). O cinema brasileiro enquanto cultura não faz mal a ninguém, não promove o ódio, não destrói nada, apenas constrói. E irá continuar construindo, independente dos esforços vindos de todas as frontes para sufocá-la.
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[…] como subversiva pelo atual Governo Federal (mais sobre isso em textos publicados nesta coluna em agosto e novembro do ano […]
[…] – Texto da Revista Badaró sobre a preservação do cinema nacional […]
[…] como subversiva pelo atual Governo Federal (mais sobre isso em textos publicados nesta coluna em agosto e novembro do ano […]