Outra paternidade é possível
- 9 de agosto de 2020
Por Marina Duarte
Colaboraram Mylena Fraiha e Norberto Liberator
As ideias do que significa ser pai estão atreladas a diversos fatores – além dos estritamente pessoais, construídos através da experiência e dos reflexos de presença ou ausência da figura paterna na vida de cada um –, existem os fatores impregnados na estruturação social, através da “patriarcalização” de relações familiares. Neste sentido, não é rara a repetição da fórmula do abandono paterno ou do patriarca inacessível.
No Brasil, boa parte das crianças nasce sem poder contar com a presença da figura paterna sequer no sobrenome – 5,5 milhões de crianças não têm o nome do pai na certidão de nascimento, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mesmo em casos não tão extremos, as mulheres são, ainda, as principais responsáveis pelos cuidados dos filhos. A porcentagem varia de acordo com a renda familiar: a pesquisa da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal aponta que 89% das mulheres com baixa renda são responsáveis primárias pelo cuidado dos filhos, enquanto, entre mulheres com renda superior a cinco salários mínimos, o índice cai para 72% e os pais, 14%.
A desigualdade de gênero também se reflete nas relações familiares. No modelo patriarcal de estruturação da família heterossexual, a atividade de criação dos filhos é designada às mulheres, enquanto os homens são colocados apenas como “provedores da casa”. Embora seja repetido em culturas de todo o mundo, tal modelo encontra sintonia com os moldes da moralidade judaico-cristã ocidental.
O modelo católico-patriarcal de família mostra-se incompatível com as formações familiares brasileiras da atualidade. De acordo com os dados do o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 43% das famílias são chefiadas por mulheres – evidências que sinalizam na contramão do discurso de autoridade masculina e da posição do homem como proprietário da família.
Com a ampliação e progressão do pensamento feminista e de outras vertentes teóricas da psicologia e sociologia que discutem o papel parental, cada vez mais encontramos homens que discutem a chamada masculinidade tóxica e o papel da figura paterna como algo que transcende o autoritarismo e ausência patriarcal. Estes homens-pais pautam sua paternidade na presença de qualidade, na divisão dos cuidados e na afetividade.
Criando com afeto
Um desses pais é Thiago Queiroz, produtor de conteúdo, palestrante e pai de três crianças, conhecido como Paizinho Vírgula, o nome de seu projeto. Com ênfase na criação com apego, advinda também de conceitos colhidos da Teoria do Apego, na Disciplina Positiva e na Comunicação Não Violenta, Thiago produz podcasts, vídeos, textos, escreveu um livro sobre paternidade ativa e falou à Badaró sobre esse novo movimento. “Eu acho que existe um movimento de homens que estão tentando fazer diferente e se questionando; homens que estão buscando vidas e relações mais saudáveis, até porque o patriarcado também fere o homem em suas relações e em sua saúde mental e física”.
Não é uma mobilização fácil, visto que existe resistência por conta dos valores instalados no senso comum sobre o que é exercer o papel de um pai. Thiago conta que, como produtor de conteúdo que visa mudar essa linha de pensamento, ainda conta com um público feminino grande e, por vezes, sua abordagem faz parte de um processo de mudança da família e do pai. “Não é raro receber mensagens de mães que perguntam ‘O que eu posso fazer para o meu parceiro se interessar? Eu peço e ele não lê’, então eu tenho essa preocupação de ter outras formas de alcançar esse cara; a criação do podcast foi a minha ideia de tentar trazer os homens para perto e é por isso que eu tenho um público maior do gênero masculino lá”.
Thiago conta que, quando o pai desperta para a maior presença no processo de criação, a transformação é grande. “Em um dos primeiros meses do podcast, a gente recebeu de um cara agradecendo muito por aquele conteúdo – um podcast feitos por pais homens, conversando sobre paternidade. – o ouvinte até brincou de uma forma que eu não vou esquecer, ele disse assim: ‘Vocês me ajudaram a sair da Idade Média. Eu era um plantador de batatas da Idade Média que fugia da Peste Bubônica, mas vocês me ajudaram a vir para a Modernidade e agora eu consigo enxergar muito melhor a minha relação que eu quero ter com o meu filho; e que eu quero ter com a minha parceira’”.
Queiroz é linha de frente desse movimento de novos pais que passaram a refletir sobre sua parentalidade e os aspectos culturais da violência patriarcal para, então, desconstruí-los no dia-a-dia. Isso envolve abordar padrões de gênero, treinar o olhar para a necessidade das crianças, executar o cuidado do dia-a-dia, ou seja, quebra totalmente com o que se esperava que um pai representasse, baseado nos estereótipos conservadores.
O despertar para uma outra paternidade possível ocorre aos poucos, como explica Israel Lins, que vê a construção da parentalidade afetiva como um processo gradual: “assim como o nascimento vem depois de longos meses de parto, um despertar vem de uma longa gestação de ideias, conversas e autoconhecimento”, diz. Israel tem uma filha e acredita que o machismo enraizado é responsável pela sobrecarga materna na criação. “Além da questão cultural, no próprio meio acadêmico a paternidade era vista como pouco importante; Paul Raeburn, em seu livro ‘O Novo Papel do Pai’, afirma que só na década de 60, 70 começaram a surgir estudos que indicavam a importância real e cientificamente comprovada do pai na vida da criança”. Lins conclui: “Ou seja, nós, pais com 30 a 40, somos filhos de pais que não tinham nem referência de estudos sobre como o envolvimento do pai na vida de uma criança é relevante”.
Rafael Carrilho foi uma exceção a esta regra: ele considera que o exemplo de criação afetiva veio justamente de seus pais, mas prefere não se definir por rótulos. Pai de gêmeos, Carrilho explica: “Não gosto de rotular minha paternidade como afetiva, presente, real ou o que for. Busco amar meus filhos da melhor forma todos os dias, não é uma paternidade apenas afetiva, mas vai muito além”. Carrilho afirma que “o pai precisa ser presente e ativamente participativo, e criar vínculo com o bebê desde a barriga da mãe; deve cuidar e apoiar a mãe em todo o processo gestacional, pós e quando o bebê nasce; deve, juntamente com a mãe, ser responsável pelo bebê – essa responsabilidade envolve a criação, educação, cuidados de higiene, proteção, afeto, vínculo, etc”.
Israel e Rafael, assim como Thiago, buscam efetivamente criar suas crianças, fazendo coro a homens que despertaram para importância do cuidado, sempre visto como tarefa feminina e subjugado como menos masculino. Essa desestabilização dos estereótipos de gênero tem potencial de romper, a longo prazo, com estruturas sociais, como explica Queiroz: “No caso específico da paternidade, eu acho que o papel do pai na criação do filho, que é quando você tem uma formação familiar que tenha o pai, a participação ativa dele é algo essencial para a pessoa entender qual o papel do homem na sociedade”, e continua: “ se a gente tem uma criança menino, é ainda mais essencial que aquele pai seja presente, que seja participativo e assuma parte da responsabilidade da casa, como é o caso das tarefas domésticas”.
O papel paterno na criação, portanto, tem, além do fator afetivo, a possibilidade revolucionária, como finaliza Thiago: “Tudo isso é essencial para que a criança forme o seu próprio entendimento do que é ser menino, do que é ser homem; e que possa contribuir lá na frente, fazendo que ele sempre olhe o mundo a partir de uma visão feminista; ensiná-lo a fazer a parte dele na busca por uma equidade de gênero”. Para além das crianças entendidas como menino, as meninas também colhem os benefícios de encontrar na figura paterna uma figura de amor e compreensão, que também exerce o cuidado, colaborando para a construção de um novo arquétipo do que é ser um homem.
Além da prática, há teoria
Com o avanço da Psicologia do Desenvolvimento, nos anos 60 do século XX, surgiu uma vertente de estudos denominada como Teoria do Apego ou Vinculação. As investigações foram iniciadas por John Bowlby, psicanalista e psiquiatra, que foi convidado a explicar por qual motivo crianças órfãs da guerra estavam apresentando as mais diversas dificuldades. Bowlby concluiu que a falta de vínculos afetivos na criação infantil, desde a primeira infância, tem consequências diretas no desenvolvimento da pessoa.
A partir das necessidades de vínculo que precisam ser supridas na infância, apontadas pela Teoria da Vinculação, surgiram movimentos para aplicar a importante descoberta à realidade. O médico estadunidense William Sears publicou, em 2001, o livro “The Attaching Parenting Book”, com o objetivo de fornecer ferramentas para o que seria conhecido como “Attaching Parenting”, termo traduzido para o português como “Parentalidade com Apego”. Por meio de ferramentas como parto humanizado, amamentação, atendimento às necessidades do bebê (no lugar da prática de calar o choro a qualquer custo), contato afetivo, cama compartilhada, cuidado consistente e aplicação da chamada Disciplina Positiva, a tendência a construir um vínculo seguro com a criança seria maior.
De acordo com essas e outras vertentes teóricas interdisciplinares atuais, a necessidade é de abandonar conceitos antiquados na criação, como o autoritarismo, a violência e papéis de gênero, e substituí-los pelo olhar gentil à infância, com compreensão das necessidades infantis e sua condição como ser em formação neurológica, sem ferramentas para entender o mundo como um adulto. Este novo olhar pode fazer a diferença na construção de um futuro com pessoas menos machistas e com a inteligência emocional mais desenvolvida.