‘O Auto da Compadecida’ e o blockbuster no cinema brasileiro

Por Igor Nolasco

Vinte anos após seu lançamento, “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes, continua sendo incontestavelmente um dos filmes brasileiros mais conhecidos e amados. Originalmente veiculada na TV Globo em 1999 como uma minissérie, sendo remontada e lançada nos cinemas como longa-metragem no ano seguinte, a adaptação da obra máxima de Ariano Suassuna tornou-se tópico recorrente de debates ao longo dos últimos anos, por meio de redes sociais como Twitter e Facebook.

O motivo está na inclusão da obra no top 250 de longa-metragens de ficção mais bem avaliados por usuários da plataforma Letterboxd, rede com foco em resenhas, listagens e avaliações de filmes. A posição foi alcançada em decorrência dos usuários brasileiros da plataforma avaliando o longa de Guel Arraes com notas altas, de forma sincera, devido ao carinho que tinham pela obra (que marcou sobretudo a memória afetiva de quem cresceu durante os anos 2000). Quando usuários de outros países decidiram conferir o filme, em curiosidade dele estar em posição tão alta na lista, ficaram em choque com o que encontraram.

“O Auto da Compadecida” é, como se sabe, a história dos sertanejos Chicó e João Grilo, que ganham a vida trapaceando até que morrem e encaram o julgamento divino no além-vida. Apesar de tratar de temas comuns ao imaginário cultural universal (dentre os autores que trabalharam a ida ao além-vida, basta citar Dante como um dos exemplos mais fundamentais), relatos de alguns espectadores estrangeiros dizem que estes não conseguir se relacionar tão bem com a obra quanto os brasileiros, causando assim um estranhamento acerca do porquê aquele filme estaria tão bem avaliado e em uma posição tão alta no top 250. Enquanto alguns questionavam a posição do longa na lista com legítima curiosidade, outros partiam para a opinião mais áspera de que ele não merecia estar ali.

A resposta foi implacável: usuários brasileiros organizaram-se para avaliar o filme com cinco estrelas, a nota máxima permitida pela plataforma, para que a média geral de notas de “O Auto da Compadecida” aumentasse ele subisse ainda mais na lista (no momento de publicação deste texto, ocupa o 8º lugar), em retaliação aos usuários estrangeiros que, segundo a opinião dos brasileiros, “não entenderam” o longa. A discussão gerada a partir de tal ocorrência foi a seguinte: deve-se defender um blockbuster brasileiro?

Ou, em primeiro lugar: o que entende-se quando é utilizado o termo “blockbuster” (que em tempos não tão distantes ainda era traduzido como “arrasa-quarteirão” no léxico nacional)?

Geralmente se pensa nas grandes produções hollywoodianas que ocupam o parque exibidor comercial. Filmes com grande quantidades de efeitos especiais e protagonizados por estrelas internacionalmente famosas. Atualmente, também caracterizados por serem partes de franquias intermináveis que angariam bilheterias bilionárias para seus estúdios. Filmes como “Vingadores: Ultimato” são os primeiros a vir à mente ao empregar-se essa designação. Quando fala-se em blockbuster, em termos gerais, fala-se exclusivamente sobre produções estrangeiras, quando, guardadas as devidas proporções, todo país tem o seu blockbuster localizado, e o Brasil não está imune disso.

Os longas que fazem maior sucesso desde a chamada pós-retomada do cinema brasileiro (caracterizada por um aumento quantitativo na produção de filmes nacionais, bem como uma maior veiculação desses filmes no parque exibidor), dividem-se, a grosso modo, em quatro subcategorias: as comédias românticas (“Qualquer Gato Vira-Lata”, “Um Namorado Para Minha Mulher”), as comédias de emancipação (“De Pernas Pro Ar”, “Minha Vida Em Marte” – este último, detentor de uma bilheteria de R$ 88,9 milhões), as comédias de contrastes sociais, caracterizadas por personagens que são jogados fora de seu meio por quaisquer circunstâncias (“O Candidato Honesto”, “Até Que A Sorte Nos Separe”) e as comédias de crônicas de costumes (“Minha Mãe É Uma Peça”, “Os Farofeiros”).

Nota-se que são todos diferentes tipos de comédia, e que todos os exemplos são filmes produzidos ou co-produzidos pela Globo Filmes, atribuição que fez com que tais produções passassem a ser referidas pelo público como “comédias Globo Filmes” de forma generalizada, pejorativa, ou ainda “globochanchadas”, em referência às comédias musicais extremamente populares no cinema brasileiro entre a década de 1930 e a de 1960. Gostando-se ou não, as comédias Globo Filmes ainda representam boa parte dos longas brasileiros que conseguem penetrar no restritíssimo circuito exibidor popular, que prioriza produções hollywoodianas, os blockbusters estrangeiros. Os blockbusters brasileiros representam uma fatia pequena do que entra em cartaz nas cadeias multiplex de cinema. Filmes brasileiros que fogem desse perfil, então, uma numeração irrisória.

Quando comparado aos exemplos supracitados, o longa de Guel Arraes parece uma anomalia. E é de fato difícil de encaixá-lo em uma destas subcategorias. Apesar disso, ele é uma comédia de crônica de costumes. Diferente de boa parte das produções que representam a dita subcategoria, “O Auto da Compadecida” não faz uma representação cotidiana da cidade do Rio de Janeiro e de suas imediações, tampouco de São Paulo. Não deixa, entretanto, de ser um filme que, por meio de seu recorte, tece situações cotidianas acerca de um determinado local em uma determinada época – por mais que tal leitura da obra seja por demais superficial, e desprovida de qualquer menção à dimensão da obra que adentra em uma espécie de realismo fantástico brasileiro escrito com muita perspicácia por Suassuna em sua obra original, que tem como matriz o cancioneiro popular, a literatura de cordel e demais matérias culturais patrimoniais brasileiras.

“O Auto da Compadecida” é um blockbuster? Em termos de produção, pode ser caracterizado como um, visto que é uma produção da Globo Filmes, assim como boa parte das comédias que dominam o parque exibidor no que se refere a cinema nacional. Em termos de bilheteria brasileira, a atribuição de blockbuster segue válida. Segundo o jornal O Estado de São Paulo, em edição de 18 de setembro de 2000, o filme foi a 2ª maior bilheteria de um filme brasileiro em um fim de semana de estreia até então, perdendo somente pra “Xuxa Requebra”. Dados da Agência Nacional do Cinema e do portal Box Office Mojo indicam o longa de Guel Arraes a quinta produção daquele ano mais assistida no Brasil em salas de cinema, ficando na frente de “X-Men: O Filme” e “Beleza Americana”.

Fato é que o filme atingiu um público imenso, tanto durante sua estadia no circuito comercial quanto depois, nos vinte anos que seguiram. Durante esse meio-tempo, enraizou-se na memória afetiva de um número considerável de brasileiros, não muito diferente do que ocorreu com franquias como “Harry Potter”, “Star Wars” e “O Senhor dos Anéis” – carecendo, claro, da exploração mercadológica que as franquias estrangeiras possuem com a produção e venda massiva de brinquedos, adereços, fantasias, etc. Apesar disso, suas falas são lembradas, suas situações tidas como memoráveis e seus personagens elevados ao patamar de icônicos. Enquanto obra associada à cultura popular brasileira, é muito mais relembrada do que praticamente qualquer comédia Globo Filmes padrão; filmes que em geral, apesar de fazerem bons números de bilheteria, tem seu conteúdo logo esquecido pela coletividade (com poucas exceções, dentre as quais a trilogia “Minha Mãe é uma Peça”).

Defender ou não defender os blockbusters brasileiros? Eles são ou não são melhores que os blockbusters estrangeiros? Qualitativamente, evidente, é subjetivo. Ocupam uma parcela muito menor do que os hollywoodianos no parque exibidor, isso é certo, mas dificilmente representam concorrentes diretos à estes. Ademais, ocupam um espaço que poderia ser preenchido por filmes brasileiros “não-blockbusters“, que saem do formato da comédia situacional. A questão não gera um debate simples, muito pelo contrário, alimenta diversas reflexões em aspectos variados. Sobretudo quando fala-se do longa de Guel Arraes, definitivamente um ponto fora da curva entre os blockbusters brasileiros tanto em formato quanto em conteúdo.

Enquanto adaptação da obra de Ariano Suassuna, “O Auto da Compadecida” representa um expoente da literatura e da cultura nordestina dentro de um meio cultural brasileiro (a saber, o cinema, e nesse caso especificamente o cinema “comercial”) que, na altura do lançamento do filme, era quase que completamente dominado por produções realizadas e narrativamente centradas no sudeste do país. Ainda que produzido por um conglomerado de mídia carioca e protagonizado por atores sudestinos no papel de sertanejos, o longa de Arraes (que é nordestino), querendo-se ou não já é disruptivo nesse cenário.

Analisar o debate por meio de uma visão puramente mercadológica dá conta apenas de uma pequena fração do que a discussão realmente comporta. Não obstante, é um ponto que precisa ser tocado. Não sob a intenção de oferecer respostas fáceis – mas para fomentar outras facetas do debate, para que ele siga em perspectivas mais estimulantes e importantes do que a posição que uma produção brasileira ocupa em uma – entre tantas – lista em uma plataforma de avaliação de filmes. Ao discutir-se um produto cultural de nosso país, pode-se entrar em diversos aspectos. O comparar a realizações estrangeiras acaba sendo um gesto vazio e canhestro.

O cinema brasileiro é o cinema do subdesenvolvimento, é o cinema do terceiro mundo. Subdesenvolvimento é filmar com equipamentos considerados inferiores aos usados em produções hollywoodianas, porque são os mais baratos e muitas vezes os únicos existentes no país. Subdesenvolvimento é ter que lidar com dificuldades de orçamento, de produção e de pós-produção. Mas subdesenvolvimento não precisa ser só isso. Vez ou outra, com um filme brasileiro, se faz mais dinheiro do que com um “X-Men”.

Igor Nolasco

Igor Nolasco

Colunista

Entusiasta do cinema brasileiro e formando em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio. Também interessado em literatura, música e história.

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