De ‘paraíso da Covid’ até o 1º lugar em mortes pela doença

Por Adrian Albuquerque e Guilherme Correia
Colaborou Leopoldo Neto

Uma série de fatores fez Mato Grosso do Sul (MS) ocupar, nesta terça-feira (3), a primeira posição entre as unidades federativas brasileiras no ranking da média móvel de mortes por Covid-19 conforme levantamento do consórcio de veículos de imprensa.

Segundo dados das secretarias estaduais de Saúde, na semana passada, MS possuía a menor taxa de letalidade – ou seja, a menor quantidade de pessoas mortas de Covid entre os outros estados que tiveram a doença. No momento de publicação desta reportagem, MS superou Santa Catarina (1,3%), Distrito Federal (1,4%), Roraima (1,5%), Tocantins (1,5%) e Amapá (1,6%).

 

Em 28 de julho, MS tinha mais pessoas internadas em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) do que o previsto para 11 de agosto – 44 dias depois da previsão inicial do estudo realizado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Como afirma a médica infectologista Mariana Croda, em um estado com “surtos epidêmicos”, a presença do coronavírus foi alterada conforme as semanas se passaram. Atualmente, Corumbá e Campo Grande são as cidades consideradas epicentros devido a registros diários de diversas mortes pela doença – posição anteriormente ocupada por Dourados, município do “cone-sul” do Estado. “Hoje, todos os municípios já têm casos da doença e há alta incidência na maioria das regiões, sobretudo naquelas que não tiveram uma ‘primeira grande onda”.

A médica relata que, devido ao fato de não haver prática sistemática de respeito às medidas de isolamento “em Campo Grande e Corumbá, não há surtos específicos, o aumento é dado pela alta transmissão da doença, a maioria das pessoas não sabe como pegou, ou pegou durante suas atividades habituais”.

Fé durante a pandemia

 

Em discordância com as medidas preventivas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como uso de máscaras, distanciamento e isolamento social, alguns líderes políticos ou religiosos de cidades interioranas recorrem a outros tipos de medidas para frear disseminação do coronavírus.

O município de Ladário (MS) decretou, no dia 14 de março, 21 dias de oração e de jejum para conter a covid-19. No documento, publicado pela Prefeitura Municipal da cidade, o pastor e prefeito, Iranil de Lima Soares (PSDB), convocava a população para participar de um “cerco espiritual de orações”. “Clamando por livramento de todo o mal e pela benção do Senhor Deus sobre este município e sobre a nação brasileira, diante da pandemia do COVID-19 (Novo Coronavírus)”.

O prefeito baseia o pedido em relação a outras pandemias enfrentadas pela humanidade e considera “que a humanidade em alguns momentos recorreu a Deus para orientá-lo em como vivenciar e superar esses momentos difíceis e turbulentos resultantes da disseminação de doenças em vários episódios da história da humanidade”. Em 23 de julho, um pastor de igreja evangélica faleceu em decorrência da Covid-19 em Corumbá, cidade vizinha à Ladário, depois de passar dias com crise respiratória em UTI na Santa Casa.

Religião, Estado e vida cotidiana

 

Os dois primeiros casos notificados em Caarapó, distante 243 quilômetros de Campo Grande, foram de pessoas infectadas que se encontraram em um culto religioso. O tensionamento entre liberdades individuais e liberdades religiosas se trata de um problema complexo e contraditório. A relação simbólica das pessoas e de grupos com o mundo passa por dimensões como classe, subjetividade e envolve o papel do Estado como mediador em situações de crise. 

Em O que faz o brasil, Brasil? (1986, p. 93), Roberto DaMatta descreve como a religião no Brasil funciona como uma linguagem de relação e de ligação – um elo que busca dignificar e fornecer um senso de comunhão e de harmonia para com o universo. Para além disso, DaMatta (1986, p. 99) argumenta que é sobre a sensação de escape do mundo material: “Uma linguagem, de fato, que permite a um povo destituído de tudo, que não consegue comunicar-se com seus representantes legais, falar, ser ouvido e receber os deuses em seu próprio corpo”.

Na fala do sociólogo há ponto interessante para se refletir sobre o papel da religião como um discurso mediador dos conflitos da realidade material em momentos de crise e, também, da ausência de instituições responsáveis por fornecer suporte aos cidadãos. Como ressalta o antropólogo e professor do curso de Ciências Sociais na UFMS, Álvaro Banducci Jr., “há um embate instalado, pautado em concepções divergentes sobre o alcance, os efeitos e a dimensão dos prejuízos causados pela doença, o que resulta em orientações díspares e contraditórias em termos de procedimentos e comportamentos para enfrentá-la.”

Para o antropólogo, o “embate” acontece no conflito entre um Estado pautado por interesses econômicos de uma elite e um discurso científico, baseado em evidências que reforçam medidas sanitárias mais severas. Em meio a essa desconfiança e insegurança sobre quais os procedimentos devem ser tomados, surgem figuras mediadoras. “Outros agentes passam a mediar o dilema, tais como familiares, líderes políticos e religiosos, e até o humor pessoal no momento de se praticar as práticas recomendadas”.

Em tal cenário de discursos divergentes e ambíguos sobre a realidade – pairando entre ciência, Estado, anticiência e o “sagrado”- a religião e os líderes religiosos ganham um caráter “consolatório e assistencialista”. Banducci diz que isso também explica a frequência de fiéis a templos e a cultos, ainda que a prática signifique correr risco de vida. “Para uma população tradicionalmente desassistida, que vive em condições precárias, de extrema vulnerabilidade, o recurso ao sagrado não raro se mostra como via possível e, em muitos aspectos, inescapável, de enfrentamento a infortúnios e crises”.

Frequentar cultos religiosos, reitera Banducci, mesmo em situações “improváveis” como uma pandemia, pode consistir, para uma população carente de assistência básica, numa espécie de “sacrifício necessários na busca por segurança e bem-estar que o Estado ausente não garante”.

Flexibilizações

 

Desde março deste ano, com o avanço da pandemia na capital de Mato Grosso do Sul, o prefeito Marcos Trad (PSD) iniciou fechamento de diversos setores da cidade e manteve os setores essenciais. Foram interrompidas atividades como transporte público, repartições, academias, lojas, e diversos segmentos – nestes inclusos os cultos religiosos.

Como em diversas outras capitais brasileiras, em Campo Grande algumas igrejas continuaram com cultos religiosos e criaram embates com o poder público para que houvesse “flexibilizações” nos decretos municipais instaurados para evitar aglomerações. 

Desde então, pressionado pelos mesmos grupos, o prefeito afrouxou as medidas que visavam frear a disseminação do novo coronavírus entre os moradores, ao passo em que utilizou do discurso religioso para se autopromover politicamente.

A flexibilização do prefeito surge em um contexto de lotação dos hospitais e de crise no controle da pandemia. “O que temos é incidência e número de casos novos sustentados. Chegou um nível alto e se mantém assim quando se analisa média móvel. Não há sinais de arrefecimento, de melhoria desses números, e o que mais nos preocupa é a alta taxa de óbitos”, pontua a infectologista Mariana Croda.

O cenário de flexibilização pode piorar um quadro de descontrole do sistema responsável por garantir a pandemia em um quadro estável. “Os hospitais estão lotados, sobretudo em Campo Grande e Corumbá. E não adianta falar só em número de leitos, há uma falência na capacidade de testes e monitoramento desses casos. O que justifica esse grande número de casos. Não temos mais capacidade de controlar a doença através do sistema de vigilância epidemiológica”.

Uma moradora do bairro Tiradentes, zona leste de Campo Grande, que preferiu não se identificar por medo de retaliação de vizinhos, relata ser “desagradável” a situação em que vive há aproximadamente dois meses no bairro. 

“Toda semana acontece um culto religioso na rua da minha casa em que há aglomeração de ao menos 100 pessoas sem cuidado nenhum em relação à Covid. Eu e vários vizinhos já acionamos os órgãos responsáveis pela fiscalização 5 semanas seguidas e eles não vêm. Alegam que não têm viatura para atender a ocorrência no momento, mas se subir até a esquina da minha casa sempre tem viatura parada na praça”.

Adrian Albuquerque

Repórter e diretor de audiovisual

Jornalista, editor de vídeo, sucinto e entusiasta de alguns filmes. Interessado em artes, cultura e política. Diretor do documentário “Isto não é uma entrevista”.

Guilherme Correia

Repórter e Subdiretor de arte

Estudante de jornalismo. Entusiasta de muitas coisas, do futebol ao audiovisual. Interessado em educação, cultura e pautas sociais.

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