Afetos ambíguos
- 15 de julho de 2020
Por Carolina de Mendonça
Ilustração por Marina Duarte
Colaboraram Guilherme Correia, Leopoldo Neto e Norberto Liberator
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Estupro é hediondo, não há dúvidas disso. As pessoas que passam por tal violação tendem a sofrer diversas consequências, que podem ser físicas (como ISTs e contusões), psíquicas (desenvolvimento de transtornos psíquicos) e/ou sociais (afetação de relações, no trabalho). Apesar de tantas sequelas que a violência pode trazer, por muitas vezes o abuso não é compreendido pela própria vítima, pois o seu estuprador tende a ser é um conhecido – e até mesmo alguém querido.
A violência sexual cometida por alguém próximo, especialmente parceiro íntimo, muitas vezes gera maior negação entre as vítimas. O estupro é popularmente associado a uma violência com uso de armas, realizada por um sujeito desconhecido da vítima, em via pública. O sistema jurídico brasileiro reforça tal ideia quando na lei que tipifica o crime faz referência de grave ameaça a vida. Estupro é sim uma violência grave, mas nem todas as vezes ocorre com ameaças físicas. As nuances da violência fazem o sujeito violentado acreditar que a problemática está em suas mudanças afetivas após a situação.
Por ser difícil de reconhecer a situação como um ato hediondo, até mesmo criminoso, é comum a permanência do vínculo com o agressor. O não reconhecimento imediato do ataque por vezes leva que o sujeito agredido busque relações sexuais com seu estuprador. Há uma infeliz confusão no Brasil que associa sexo a estupro, compreendendo que a motivação para tal ato se dá por um desejo incontrolável, quando na real é se trata de um contexto de relações de poder e de desumanização impossível de se aproximar a sexo.
É comum o uso de outras formas de agressão durante a violência sexual, mesmo no contexto de um abusador conhecido. Por esses afetos envolvidos a situação é muitas vezes vista como apenas um desconforto, um momento de descontrole. A culpabilização, comum em casos de estresse pós-traumático, acaba se fazendo presente ao buscar compreender a situação passada.
Em casos de relacionamentos amorosos é comum que as agressões venham seguidas de uma fase de reconciliação. O Instituto Maria da Penha descreve o momento quando o agressor demonstra arrependido do que fez, promete mudar, se mostra mais carinhoso. Tal contexto é extremamente perigoso para revitimização, pois o agressor mesmo com discurso (aparente) de culpa tende a se colocar de maneira passiva, sendo colocada na vítima a obrigação de parar os comportamentos agressivos.
A passividade do abusador acaba por desqualificar os sentimentos e entendimento da vítima, nesse sentido narrativas pós-abuso tendem a prestar como uma violência psicológica. A ambivalência entre acreditar que a agressão não aconteceu por mal, mas sentir mal ao lembrar da situação geram uma angústia que deixa a vítima mais vulnerável. Compreender que passou por um estupro por si já é algo muito difícil, quando há proximidade com o autor da agressão a negação se torna ainda mais forte.
A própria residência em diversos casos vira o ambiente de violação. Por conta da pandemia de coronavírus foi proposta a quarentena (falha em políticas públicas) em todo território nacional, diversos trabalhos e estudos foram transferidos para modo remoto, fazendo que as pessoas passem muito mais tempo em casa. Com o atual cenário a violência doméstica, inclusive sexual, teve significativo aumento. Acaba por ser mais arriscado para muitas pessoas, especialmente mulheres, estar em casa.
Denúncias podem ser feitas pelo número 180, a ligação é gratuita e anônima. Pode-se também procurar ajuda em uma delegacia, há delegacias especializadas em violência doméstica pelo Brasil. Além de buscar auxílio com redes de assistência social tal como Centro de Referência de Assistência Social (CRAS/CREAS) ou Unidade Básica de Saúde (UBS), caso de cidades menores. Faz-se necessário o reconhecimento da situação e da estrutura que a reforça, tanto em emancipar as vítimas da situação. Estupro não é um problema individual, mas uma questão social.
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[…] Há uma prevalência nas tentativas de suicídio entre mulheres. Dentre os motivos do alto índice, o machismo se faz presente. O sistema de opressão de gênero violenta todas pessoas que desviam do padrão do homem cisgênero. Entre as diversas formas de abuso, estão o assédio sexual e o estupro. Histórico de violência sexual é fator de risco para desenvolvimento de comportamento suicida. O trauma provocado por tal violência reverbera em contextos da existência, agravando-se porque na maior parte das vezes o abusador é alguém próximo. […]