Cura proibida: o uso medicinal da maconha

Por Marina Duarte
Colaboraram Mylena Fraiha e Norberto Liberator

O debate sobre a legalização e regulamentação da maconha medicinal não é novo, mas tem sido mais frequente no Brasil desde o ano passado. Em dezembro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a importação de remédios à base de canabidiol a partir da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 327. Em junho deste ano, o Rio de Janeiro se tornou a primeira unidade da Federação a permitir o cultivo da planta com fins medicinais.

O Projeto de Lei (PL) 174-A/2019, de autoria do deputado estadual fluminense Carlos Minc (PSB), foi aprovado por unanimidade na Assembleia Legislativa e vetado pelo governador Wilson Witzel (PSC), mas o veto foi derrubado após nova votação, na qual 41 parlamentares se posicionaram a favor, 15 contra e seis se abstiveram. Após a aprovação, os pacientes com prescrição médica que se enquadrem nas normas regulamentadas pela Anvisa poderão cultivar a erva como remédio.

Como mostramos na reportagem anterior desta série, a relação do ser humano com a Cannabis é de longa data, com os canabinoides, ao menos, é profunda: temos até mesmo um sistema biológico específico para sintetizá-los, que é o Sistema Endocanabinóide, observado pela primeira vez pelo médico búlgaro-israelense Raphael Mechoulam, em pesquisas ocorridas durante a década de 1990.

O cânhamo foi introduzido na costa brasileira, primeiramente, servindo de revestimento a esta e, posteriormente, na forma de sementes, por negros trazidos em navios como mão de obra escravizada. A coroa não combateu a “diamba” ou “fumo de Angola”, como era denominado, chegando a incentivar seu consumo em alguns momentos, como mostraremos adiante nesta reportagem.

Até o final da década de 1930, quando a ONU e os Estados unidos capitanearam o início da guerra às drogas, a maconha era vendida como cigarro (conhecido como “cigarros índios”, a Cannabis Indica era vendida sob a marca de Grimault) e como remédio para diversas enfermidades. Em 1936, deu-se a abertura da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes que estabeleceu, 10 anos depois, o Comitê Interestadual da Maconha, que unificou o país na luta contra os “entorpecentes”. Tal luta era, desde seu início, um projeto de perseguição higienista de combate aos pobres.

“O historiador Jorge Luz de Souza realizou uma pesquisa sobre indivíduos acusados de serem maconheiros nas décadas de 1940 e 1950, na Bahia, e constatou que estes pertenciam às categorias funcionais que se encontravam na linha de frente das manifestações e conflitos sociais do momento, como trabalhadores portuários, marítimos, gatunos, militantes contra a carestia, trabalhadores informais atingidos pelas operações de higienização urbana operada em feiras livres e frequentadores de locais de boemia. (…) O pesquisador argumenta que a criminalização da maconha na Bahia, além de servir como pretexto para a manutenção do preconceito racial, desenvolveu um discurso salvacionista que fortalecia a discriminação de classe e fornecia pretextos para plano de intervenção no modo de vida dos subalternos. (SOUZA, 2012)”
(MACRAE, Edward e COUTINHO ALVES, WAGNER, 2016, in Fumo de Angola: canabis, racismo, resistência cultural e espiritualidade, p. 26)

Na contramão do projeto de poder que a guerra às drogas significa, estão os avanços científicos acerca da Cannabis e sua aplicabilidade na medicina, que teve sua abordagem prejudicada pelo contexto de perseguição político à erva. Porém, a produção científica sobre o assunto tem crescido, sobretudo após a legalização da maconha em alguns países das Américas e da Europa, desde o início deste século. Um destes estudos, recentemente publicado por estudiosos canadenses, apontou eficácia dos fitocanabinóides em variedades de Cannabis Sativa no bloqueio do Sars-cov-2 nos tecidos.

No Brasil, se a realidade da pesquisa já é difícil, quando esta tem a maconha como objeto de estudo é mais ainda. O pioneiro na ciência canábica brasileira, Elisaldo Carlini, é um médico que estuda há pelo menos 50 anos a erva e seus benefícios, e tem histórico de luta pelo uso medicinal. Carlini foi um dos idealizadores da chamada “Agência Nacional da Maconha Medicinal”, que considerava importante instrumento para divulgar informação e possibilitar cura. A Agência nunca saiu do plano das ideias, mas a luta pelo aprofundamento da ciência brasileira nos estudos da erva se desdobrou na fundação da Sociedade Brasileira de Estudos Canábicos, a SBEC.

O avanço da pesquisa

A SBEC reúne pesquisadores da medicina e de outras áreas com o objetivo de incentivar a produção acadêmica brasileira com viés canábico medicinal, colocando-se à disposição, entre outras atividades, como coorientadora em trabalhos científicos. A psiquiatra e psicanalista Eliane Nunes, diretora-geral da entidade, falou à Badaró sobre a realidade do uso medicinal da erva no país.

Com 33 anos na área psiquiátrica, Eliane sempre trabalhou com pacientes dependentes químicos e relata que a Cannabis era comumente escolhida como a substância de transição no tratamento de redução de danos. Com o avanço da pesquisa na área, outras possibilidades terapêuticas com a maconha começaram a ser exploradas, até que a prescrição passou a ser possível no país, com muitas ressalvas. “Desde 2014 a gente pode prescrever, então a partir desse momento eu comecei a prescrever oficialmente a Cannabis medicinal e atendi a primeira criança autista. Até o momento não era permitido, só para crianças epiléticas.”  

Até a resolução de 2019, houve muita mobilização e pesquisa sobre o tema, mas a RDC ainda não torna o remédio realmente acessível. “A Anvisa desde 2015 faz várias regulamentações. Inicialmente, o médico podia prescrever somente as marcas que estavam estabelecidas no site da regulamentadora. Posteriormente foram ampliando para outras marcas e, a partir do ano passado, a Anvisa abriu o mercado para as outras marcas. A gente não tem mais lista de marcas e o paciente não faz mais o registro e o cadastro no governo”. 

Ainda assim, as opções são limitadas, devido à falta de permissão para produção no país, que reduz a disponibilidade e o acesso. Sobre isto, Eliane comenta: “Hoje o paciente tem a opção de comprar o óleo da ABRACE, que é a única associação que tem permissão judicial para fazer o cultivo em solo brasileiro; ele pode comprar na farmácia um que custa 3 mil reais e pode comprar um óleo que custa 2.500 reais. Se a pessoa precisa usar o THC, ela tem que recorrer à Abrace ou ao mercado ilegal, pois só existe uma opção, que custa 3 mil”.

A diretora-geral da SBEC também explicou que o plantio é essencial para que se crie um cenário favorável ao paciente. “Nós podemos plantar no Brasil apenas seguindo os vários dispositivos colocados pela Anvisa. Isso não é muito positivo, porque acaba excluindo o uso associativo por associações sem fins lucrativos que não tem condições de competir no mercado”, afirma a médica. “Só podem plantar maconha no Brasil as pessoas que têm autorização judicial, que são poucas perto das milhões de pessoas que precisam. No Brasil existem 10 milhões ou mais de pessoas que têm necessidade de fazer o uso de Cannabis, pois estão enquadradas no uso compassivo, ou seja, uma pessoa que já tentou várias medicações e terapias, e já pode usar a Cannabis como coadjuvante ou até utilizar somente ela no tratamento”.

Existem possibilidades de que o plantio para fins medicinais ocorra no país, como a proposta elucidada por Eliane de “que o SUS fizesse a distribuição, por exemplo, de plantas para as pessoas que precisam; que desse o suporte, através de universidades”. De acordo com a médica, desta forma a saúde pública “controlaria a qualidade do óleo, como já é feito com qualquer outra planta medicinal dentro do programa Farmácia Agrícola”.

Da forma como o remédio é “distribuído” hoje, é necessário pagar caro ou solicitar ao Estado, por vias judiciais, a aquisição do medicamento pelo SUS, que cobre o valor. Só no Estado de São Paulo, em 2018, gastaram-se 8 milhões de reais dos cofres públicos para bancar medicamentos dessa natureza para 200 pacientes. O atual veto ao remédio custa caro aos cofres públicos e beneficia a indústria exterior, enquanto poderia gerar receita nacional em prol do progresso da ciência.

Com a dificuldade no encontro de prescrição e acesso à medicação, várias associações surgiram pelo país com o objetivo de informar, debater, estudar e promover qualidade de vida por meio da Cannabis medicinal. “É uma coisa incrível a melhora dos pacientes, parece milagre, por isso o nome Santa Cannabis e é esse resultado que move todos nós da associação”, explica Pedro Sabaciauskis, presidente da ONG Santa Cannabis, que atende pacientes do país todo. 

Sabaciauskis explica que o objetivo da Associação é “ajudar e representar os pacientes que têm indicação para o uso, oferecendo serviços médicos e jurídicos, além de informar e participar de ações políticas para a regulamentação da cannabis existentes no país”. Sobre a resolução da Anvisa, Pedro diz que o aspecto positivo desta é ter ajudado as associações a ampliar seu alcance, mas que não condiz com a necessidade dos pacientes brasileiros; segundo ele, esta “é uma regulamentação burra que passa por interesses obscuros”.

O trabalho de médicos que se dedicam ao assunto e de pequenas associações, que reúnem especialistas e outros pacientes, é uma das alternativas para pessoas que precisam do tratamento, como o jornalista Alexander Onça. Ele contou à Badaró que, após descobrir o tratamento com óleo de Cannabis, conquistou mais qualidade de vida. “Eu tinha muitas crises, desde criança e já tinha ido em psicólogo, me falaram muitas coisas. No psiquiatra fui mandado para um neurologista, que me disse que meu quadro era um princípio de Síndrome de Tourette”. 

A Síndrome de Tourette é um distúrbio do sistema nervoso, caracterizado por movimentos ou emissão de sons indesejados. Onça explica que precisa do THC em sua medicação. “Meu quadro não é o mais grave, existem alguns em que a pessoa não conseguiria nem dar essa entrevista e, no meu caso, é o THC que reduz os tiques motores”. Assim como ele, muitos pacientes precisam do componente, que tem quantidade restrita pela Anvisa, nas medicações.

Alexander e Jéssica Camargo organizaram um grupo chamado FloreSer, em Campo Grande (MS). Jéssica conta que, a partir de uma conta em rede social sobre o uso medicinal, encontrou uma entidade composta por mulheres que visam auxiliar o tratamento de seus filhos e que, junto a elas, chegou a participar de reuniões com a Fiocruz. As participantes formam um pólo local da SBEC, chamado “Núcleo Verde” ou “Grupo Verde”*. Esses núcleos contam com ambulatórios sociais, formados por médicos prescritores, pacientes e associações, e buscam viabilizar consultas para pacientes, a fim de facilitar o acesso ao medicamento.

Esta reportagem é parte da série “Uma Viagem pela Cannabis”. Confira as outras matérias da série aqui.

MARINA DUARTE

produtora-executiva

Ilustradora, acadêmica de psicopedagogia, estudou jornalismo. Militante feminista interessada na profunda transformação social.

Mylena Fraiha

Editora-executiva

Jornalista e pesquisadora em comunicação. Possui interesse nas áreas de meio ambiente, política e direitos humanos, além de produções audiovisuais.

Norberto Liberator

Editor-chefe

Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

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