Nelson Pereira dos Santos e o cinema enquanto roda de samba
- 24 de junho de 2020
Por Igor Nolasco
Dentre as manifestações artísticas populares mais tradicionais do Rio de Janeiro ainda existentes e pulsantes está o samba de roda. Por algum motivo, parece haver uma espécie de lacuna no cinema brasileiro no que se refere à representação do samba; uma inaptidão em reforçar essa iconografia. Isso pode parecer paradoxal, pois mesmo aos olhos do exterior, samba é tido como um dos representantes mais facilmente reconhecíveis e identificáveis da cultura popular do país. Ademais, poucos realizadores de expressão demonstraram interesse em retratar a roda de samba através de suas lentes.
Mesmo os grandes sambistas de maior reconhecimento radiofônico parecem ser objetos pouco atraentes para nossos cineastas. Basta dizer que Cartola só foi ser tema de um filme expressivo, que chegou a circuito comercial, quando Hilton Lacerda e Lírio Ferreira lançaram o documentário “Cartola, Música Para os Olhos”, em 2007. (Para falar de Cartola, pode-se fazer um breve adendo para dizer que ele atuou sob direção de Carlos Diegues em um papel pequeno em “Ganga Zumba”, de 1964) Idem com Bezerra da Silva, sobre o qual se debruçaram os documentaristas Márcia Derraik e Simplício Neto ao realizar “Onde a Coruja Dorme” em 2006. Ainda em vida, Moreira da Silva foi objeto de um curta-metragem que leva seu nome, em 1973, rodado por Ivan Cardoso, além de ter feito uma ou outra ponta nas comédias musicais conhecidas como “chanchadas”, populares entre os anos 1930 e 1960. Essas participações eram pequenas e em geral resumidas a números musicais, como em “Maria 38”, de 1959, onde ele apresenta seu clássico samba “Na subida do morro”.
Leon Hirszman buscou realizar um retrato mais abrangente, que ainda assim não perdia de vista figuras simbólicas para a história do samba, através de alguns curta-metragens. “Nelson Cavaquinho”, de 1969, parte da figura do músico para extrair, do ambiente a seu redor, uma série de imagens acachapantes sobre a vida nas periferias urbanas do Brasil. “Partido Alto”, de 1982, foi realizado em colaboração com Paulinho da Viola e é um estudo-homenagem ao estilo de samba que intitula o filme, não obstante sendo uma homenagem a Candeia, um de seus mais célebres expoentes. Expoente do Cinema Novo, Hirszman tem em seu colega Paulo Cezar Saraceni um cineasta também interessado em trazer para as telas as grandes figuras do samba carioca em uma visão integrada à vida da comunidade, o que fez no longa “Natal da Portela”, de 1988.
Se a citação desses exemplos pode parecer contraditória quando justaposta à afirmação inicial de que o cinema brasileiro carece de dar ao samba o reconhecimento que merece enquanto genuína cultura popular, é preciso deixar claro que a citação ipsi literis desses casos nada mais serve para numerá-los e mostrar que eles são poucos. Não se trata de listar todos os filmes existentes que envolvam a temática, mas sim de, ao pensar nos que efetivamente a tem em primeiro plano, perceber que são tão poucos que é possível contá-los, citá-los.
Foco em Nelson Pereira dos Santos
Um dos poucos cineastas brasileiros que realmente entendeu a roda de samba enquanto legítima manifestação da cultura popular, manifestação legítima, potente, rica de sentidos, foi Nelson Pereira dos Santos. Falecido em 2018, ele tragicamente parece não ter deixado sucessores que compartilhem dessa visão entre seus colegas mais novos. Apesar disso, um número de filmes de sua vasta obra tem no samba um ponto de interesse.
Desde seu primeiro longa-metragem, “Rio, 40 Graus” (1955), Pereira dos Santos já detinha demonstrado o interesse em um retrato do Rio de Janeiro que fosse próximo a realidade, incorporando elementos da cultura popular local. Mesmo que não sendo o ponto focal, o samba aqui já se mostra presente: a abertura do filme é embalada por uma versão orquestrada da canção “A Voz do Morro”, de Zé Kéti, que além de sambista também era amigo de Nelson, participando da equipe técnica de “Rio, 40 Graus”.
O projeto seguinte de Pereira dos Santos, “Rio, Zona Norte” (1957) é livremente inspirado na vida de Zé Kéti. Grande Otelo interpreta Espírito da Luz, sambista que vive na titular zona norte do Rio de Janeiro e está sempre em trânsito para outros pontos da cidade na negociação da venda de suas canções. Em uma dessas viagens, em um trem em movimento lotado que parte da Central do Brasil, ele despenca e sofre um acidente. Enquanto paira por um estado de semiconsciência, Espírito – e o espectador, por consequência – relembra dos maus percalços que teve ao longo de sua vida, da relação afastada com o filho até suas desventuras na indústria musical. Os sambas que aparecem ao longo do filme são todos de autoria do próprio Zé Kéti, tendo sido posteriormente gravados pelo mesmo.
Talvez o que exista de mais marcante em “Rio, Zona Norte” seja a forma como ele elucida o forte contraste entre compositor e intérprete na hoje secular indústria do samba carioca, escancarando o racismo e o preconceito de classe velados que permeiam nessas relações. Os empresários da indústria fonográfica, rostos brancos e sorridentes, fazem a todo custo esforços para se aproveitar das músicas de Espírito sem lhe dar o devido crédito em suas composições, sem lhe pagar o que é devido e sem permitir que ele mesmo grave as canções que escreveu. Mesmo quando ele percebe a desonestidade dos que dizem ser seus amigos no meio artístico, estes não continuam a tentar empreender novas formas de dissuadi-lo. No fim, sempre conseguem o que querem.
Assim eram as relações na indústria fonográfica carioca durante as primeiras décadas de existência do samba (e dizer que essas relações não existem mesmo hoje seria ingenuidade). Compositores negros eram escondidos por detrás de contratos que lhe roubam o devido crédito, e suas músicas eram cantadas por intérpretes brancos, de perfil considerado bem apessoado pela indústria e pelos ouvintes. O que Nelson Pereira dos Santos faz é não apenas capturar o samba com um olhar de admiração pelo que ele é enquanto arte, mas fazê-lo com um viés crítico sobre o que ele é enquanto indústria, não estando nem um pouco distante da realidade. Basta pensar no exemplo de Cartola, compositor em atividade desde os anos 1920, tendo colaborado até mesmo com Noel Rosa, mas que só foi gravar um disco como intérprete de suas próprias canções nos anos 1970. “Rio, Zona Norte” traz para o espectador a denúncia de um problema estrutural, resultado do racismo irremediável que está enraizado em todas as relações sociais do Brasil.
O momento mais tocante do filme provavelmente está na sequência em que o personagem de Grande Otelo vê seu samba “Malvadeza Durão” interpretado por uma das maiores estrelas radiofônicas da época Ângela Maria (interpretada por ela mesma). A genialidade de Pereira dos Santos está em, nesse momento crucial, deixar a câmara em Espírito, e não em Ângela Maria. O que o espectador vê é a reação do compositor ao ver seu samba sendo cantado pela estrela. E o que Grande Otelo entrega é indubitavelmente uma das melhores interpretações de sua carreira.
A relação de Zé Kéti com o cinema também compreende uma rápida participação no filme “O Desafio”, de 1965. No longa, dirigido por Paulo Cezar Saraceni, o personagem de Oduvaldo Vianna Filho é mostrado assistindo fragmentos do espetáculo musical-teatral Opinião, do qual Zé Kéti fazia parte e também servira como inspiração para o nome, que fora retirado de um samba homônimo de sua autoria. Para além de ser um dos filmes que melhor discute a reação da classe média brasileira ao golpe militar de 1964, o filme de Saraceni tem o mérito de ser um dos poucos registros audiovisuais do Opinião, que era uma voz de resistência política manifestada pela arte na aurora do regime ditatorial.
Essa ligação entre o sambista e o cinema acaba com sua morte, em novembro de 1999. Um epitáfio para a contribuição entre o sambista e o cinema brasileiro só poderia ser feito por Nelson Pereira dos Santos. Ela chega em 2001, através do curta-metragem “Meu Compadre Zé Kéti”. Os velhos companheiros de roda de samba do homenageado aparecem fazendo uma celebração à sua vida na ocasião de sua morte, tocando músicas de sua autoria e relembrando histórias sobre o compositor. No local da roda de samba que era caracteristicamente ocupado por Zé Kéti, um chapéu representa o amigo que não pode mais estar ali. Naquele chapéu, Nelson Pereira dos Santos consegue concentrar o peso, a carga dramática, a nostalgia agridoce que muitos filmes inteiros não conseguem passar.
“Meu Compadre Zé Kéti” pode ser lido como uma espécie de “filme-irmão” do curta-metragem que Glauber Rocha lança em 1977 sobre a morte do pintor Di Cavalcanti. Assim como Nelson em “Meu Compadre Zé Kéti”, Glauber presta uma homenagem póstuma um artista que fora seu amigo de forma animada e em ritmo de celebração, e não de luto. Faz isso, claro, à sua maneira, que é diferente do modo como Nelson conduz a celebração à vida de Zé Kéti em seu filme. Os dois filmes, ademais, salientam que o tributo a grandes artistas brasileiros não deve ser feito em tom fúnebre, mas sim honrando os aspectos vibrantes e tocantes de sua arte.
Infelizmente, ao falecer em 2018, Nelson Pereira dos Santos pareceu não deixar sucessores no que se refere ao interesse em retratar a roda de samba em toda a sua vivacidade, porém sem perder de vista a sombra maliciosa da indústria fonográfica. Saraceni, que filmara Zé Kéti no Opinião em 1965 e fizera “Natal da Portela” em 1988, falecera em 2012, e Leon Hirszman, de “Nelson Cavaquinho” e “Partido Alto”, em 1987. Caso as novas vozes do cinema brasileiro, nascidas ou não no Rio de Janeiro (Nelson Pereira os Santos, afinal, era paulista), permaneçam sem demonstrar interesse pelo samba enquanto parte inalienável da cultura popular brasileira, é possível que em determinado momento, no que se refere ao debate sobre a relação entre o samba e o cinema brasileiro, falemos mais sobre os mortos do que sobre os vivos.
Resta esperar que o mundo dê suas voltas e o interesse por esse elemento da cultura popular brasileira ressurja entre as novas gerações de cineastas do país; afinal, se o mundo é um pandeiro, o cinema é uma roda de samba.
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