Fantasma do neonazismo ronda o black metal há três décadas
- 19 de junho de 2020
Detenção de fãs de banda neonazista norueguesa levou ao grande público a problemática presença da extrema-direita na cena do metal extremo
Por Norberto Liberator
Com 29 anos de existência e com uma fama baseada em polêmicas extra-música, o Burzum – projeto musical do terrorista de extrema-direita norueguês Kristian “Varg” Vikernes – voltou recentemente aos noticiários, desta vez no Brasil. No último domingo (14), três jovens foram detidos após importunar manifestantes antifascistas em frente ao Museu de Arte de São Paulo (Masp). Dois deles vestiam camisetas com estampas do Burzum, sendo que uma continha suásticas nas mangas; o outro trajava um casaco da banda sueca Watain, cujo guitarrista – o italiano Davide Totaro – já posou para fotos fazendo a saudação nazista do braço levantado.
O repórter Luís Adorno, do UOL, foi empurrado pelas costas por um policial e teve a tela de seu celular, com o qual filmava a abordagem, quebrada. Os três simpatizantes do neonazismo foram levados pela Polícia Militar e encaminhados à delegacia, mas liberados em seguida. Segundo a Polícia Civil, eram apenas “camisetas de bandas de rock”. A Ouvidoria da Polícia, no entanto, emitiu uma nota na qual enquadra o caso como crime de ódio.
Na terça-feira (16), o 78º Distrito Policial de São Paulo apreendeu a camiseta de um dos envolvidos. Foi registrado novo boletim de ocorrência e a Secretaria de Segurança Pública (SSP) informou ao UOL que um novo inquérito já está em andamento, para apurar se houve crime relativo ao artigo 20 da Lei 7716/86, que proíbe a utilização e divulgação de símbolos nazistas. Caso condenados, os investigados podem pegar de um a três anos de prisão por prática ou indução de discriminação racial, além de dois a cinco anos por apologia ao nazismo.
A Badaró conversou com o músico e militante antifascista Gerson Lima*, baterista de uma banda de grindcore paulistana, que denunciou o caso e depôs na delegacia. “A manifestação estava marcada para as duas [da tarde]. Cheguei uma hora, uma e dez, por aí. Daí eu encostei, debaixo do Masp, e fiquei de boa. O pessoal estava chegando ainda. Só que já tinha uma quantidade excessiva de policiais. Na ciclovia no meio da Paulista, tinha uma quantidade enorme e, na fileira em que eu tava, também”.
Apesar do receio, o músico conta que não se intimidou. “Eu vi, falei: ‘caralho, que porra é essa?’, os caras foram chegando perto e passaram perto de mim, eu falei: ‘nossa, mano, olha as ideias desses malucos, esses caras vão fazer alguma merda, estão passando no meio da passeata, ainda bem que tá no começo’, passando no meio do bagulho, sem máscara, os três. Aí eu fui pra cima”, explica Gerson. “Tinha um monte de policial. Eu fiquei cabreiro de agredir, a real foi essa. Eu agredi verbalmente, pra caralho. Fui escorraçando os caras e cuspi na cara de um dos malucos”.
O militante conta que decidiu, então, comunicar à polícia sobre o uso do símbolo nazista por parte de um dos jovens. “Tinha um policial bem colado. Eu pensei: ‘se eu bater, vou preso, vai dar B.O. pra mim’. Esculachei os malucos, chamei de tupiniviking, e um monte de gente começou a chegar também. Começou um monte de gente a gritar, foi um tumulto da porra, cheguei no policial gritando pra caralho: ‘que porra é essa? Camiseta com suástica?’, um monte de gente gritando e ele ficou ‘boiando’. Essa foi a impressão que eu tive, não estou defendendo a polícia, não; ele não entendeu de cara”.
Apesar de estar no mesmo local, Gerson não chegou a ver a agressão contra o repórter Luís Adorno devido à confusão que se generalizou. “O vídeo do UOL foi interrompido pelo empurrão de um policial, eu fiquei sabendo depois, mas na hora lá eu não vi. Ficou uma confusão do caralho, o policial falou: ‘não, mas a gente vive num país democrático’. É que uns malucos são preguiçosos pra caralho. Mas teve um outro que entendeu o que eu quis dizer. Aí eu fui e falei na calma: ‘é uma suástica’, ele falou: ‘então você quer registrar?’, falei: ‘quero’”.
O último policial com quem Gerson conversou foi quem ordenou a detenção dos três fãs de black metal neonazista. “Eu falei: ‘olha as camisetas desses caras, o que estão fazendo aqui?’, ele falou: ‘não, pode levar, que é crime’. Revistaram os moleques, não tinha porra nenhuma, mas quem garante que esses caras não tinham uma faca escondida? Meu pensamento inicial foi esse. Os caras com cara de debiloide no meio da passeata antifa, estavam corajosos demais”, conta o músico.
Na delegacia, de acordo com o militante, os jovens foram alvo de piadas devido às camisetas. “O delegado ficou só aloprando os moleques. Olhou na internet, viu a história da banda, todo mundo ficou: ‘alá os vikings’, ficou falando os nomes dos caras [em volume] alto, e era tudo nome normal de brasileiro. Ele deu risada e me falou que, como a suástica está descaracterizada, não iria autuar como crime de ódio, só dar uma canseira nos caras, fazer as mães colarem lá, até porque um era menor de idade”.
Burzum, black metal e neonazismo
O Burzum é conhecido pela simpatia e adesão de Varg Vikernes, seu único membro, à ideologia nazista. O músico – que passou 16 anos preso por matar Oystein “Euronymous” Aarseth, ex-colega de banda, com 23 facadas – já explicitou em diversas entrevistas e em escritos próprios que acredita em ideais de pureza racial e que possui simpatia por Adolf Hitler. Em 2013, o norueguês foi preso na França por suspeita de planejar um atentado terrorista.
Ele era investigado desde que recebeu cartas de seu conterrâneo Anders Breivik, neonazista que matou 77 pessoas a tiros em 2011. Vikernes, no entanto, nega proximidades com Breivik, a quem critica por ter matado mais noruegueses do que imigrantes muçulmanos e a quem considera um “cristão perdedor”. Para o músico, os ideais de supremacia ariana não combinam com cristianismo, já que esta é uma religião de origem judaica.
Posturas favoráveis ao nazifascismo não são algo novo para apreciadores de black metal – vertente do heavy metal conhecida pelos vocais rasgados, baterias aceleradas e letras anticristãs, na qual o Burzum se enquadra. A ideologia é compartilhada por muitas bandas do gênero, bem como é tolerada por diversos músicos, fãs e produtores. Há um subgênero específico chamado National-Socialist Black Metal (NSBM), cujas bandas têm a ideologia nazista como tema central. O historiador marxista Thomaz Herler, mestre em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e ex-guitarrista da banda Obscuro Ímpeto, explicou à Badaró como se originou e se desenvolveu essa proximidade de parte considerável do estilo com ideologias de extrema-direita.
Herler aponta que a simpatia pelo nazismo por parte de alguns músicos, no rock de maneira geral, se iniciou de forma descompromissada e pouco séria. “Eu penso que isso começou como uma forma de niilismo. Se a gente pega, por exemplo, o Sex Pistols ali na década de 70, eles usavam por vezes símbolos nazistas, símbolos comunistas, só que aquilo era um puro apelo niilista, uma forma de usar símbolos chocantes para o ocidente, para poder gerar uma certa polêmica”, afirma o professor.
“No caso do black metal, já entra no campo da misantropia. E o Varg Vikernes partiu desse mesmo campo: ‘eu sou nazista porque eu quero a desgraça da humanidade mesmo, eu sou anti-humanista, quero que todo mundo morra dentro de campo de concentração, morra de fome e que se foda’. Eu acredito que no começo era isso”. De acordo com o historiador, a estética nazista utilizada como forma de gerar choque evoluiu para a adesão ideológica. “Isso começou a pegar uma consistência, principalmente pela herança pagã politeísta que existe no black metal nórdico”.
A Noruega é o país de origem da maior parte das bandas de black metal mais famosas do mundo. Algumas dessas bandas formaram, durante a década de 1990, um grupo conhecido como Inner Circle (“Círculo Central”), que tinha como objetivo combater a herança cristã na cultura escandinava. Os membros do Inner Circle protagonizaram uma série de cerca de 50 incêndios contra igrejas norueguesas, entre 1992 e 1996.
Para Herler, a apologia dos músicos ao paganismo nórdico foi crucial para que a simpatia pelo nazifascismo se desenvolvesse profundamente. “Foi nesse ponto que o nazismo começou a tomar mais corpo dentro do black metal, e foi, com isso, surgindo uma série de bandas que propagavam ideais xenófobos, se colocavam como antiiluministas, a favor da guerra, de uma honra, de um legado ancestral que estava sendo destruído pelo ideal civilizatório francês, iluminista”.
Na autobiografia “Uma História do Burzum” (2004-2012), Varg Vikernes dedica o sétimo capítulo (“O Fantasma Nazista”) para discorrer sobre sua relação com o nazifascismo. Nele, o músico afirma que se sentiu atraído pela ideologia porque muitos nazistas rejeitaram o cristianismo e adotaram crenças pagãs, chamadas pelo criador do Burzum de “religião de sangue” dos povos nórdicos. Ainda segundo Vikernes, os membros do Partido Nazista foram “os primeiros a fazer isso depois de muito, muito tempo”.
Mesmo com ideais muito específicos de pureza de raça, Varg Vikernes possui diversos fãs no Brasil, entre eles muitos jovens. Em eventos de metal extremo, não é incomum que haja pessoas com camisetas do Burzum, além de outras bandas simpatizantes ou adeptas do neonazismo, como a polonesa Graveland, a alemã Absurd ou a finlandesa Satanic Warmaster.
Em “Trevas na cidade: o underground do metal extremo no Brasil” (2008, p. 165), o sociólogo Leonardo Carbonieri Campoy aponta que o meio black metal é marcado por uma forma pré-cristã de conservadorismo, baseada em valores rígidos de honra e de saudosismo à Antiguidade, para os quais “o cristianismo está classificado como o corolário de um mundo contemporâneo baseado na ‘aparência’ e ‘imagem’, inteiramente desgostoso para o black metal”.
Underground antifascista
Gerson Lima defende que ação direta é a forma mais efetiva de combater a infiltração nazifascista na cena underground. “Os malucos são ignorantões. Ignorância da porra, não têm educação, não têm noção de porra nenhuma, aí qualquer coisa entra na cabeça do cara. Mas tem que ser chacota e, se pegar de quebrada, tem que dar um pau. A sério é que não dá para levar”. Ele acredita que a relação do black metal ao paganismo nórdico facilita a propagação de ideologias de extrema-direita. “Conheço um monte de gente que gosta e não é otária, mas a história do black metal é estranha, tem um monte de maluco que virou nazi, simpatizante do bagulho, os caras se acham superiores”.
O baterista acredita que, desde a eleição de Jair Bolsonaro para o cargo de presidente da República, movimentos de extrema-direita tendem a crescer. “Os caras vão tomando uma liberdadezinha porque uma merda de um presidente desses toma o poder, o cara é fascistão. Um cara totalmente ignorante, burro pra caralho. O povo caiu na cilada, né? Esta época de agora está sinistra e, por causa da eleição dessa porra, começou um monte de gente a botar as asinhas para fora”, conclui.
O vocalista das bandas Dor de Ouvido e Japurá Noise Project, Enrique Gonçalves de Souza, acredita que o ultranacionalismo e o discurso de pureza racial de algumas bandas europeias muitas vezes é “importado” por músicos e fãs brasileiros. “Sempre vi isso no meio, em bandas gringas, que falam sobre ‘orgulho’ e ‘costumes’ de seus países de origem, mas que realmente falam é de ideias de superioridade ancestral e orgulho nacionalista idiota. Enaltecem isso com as guerras já feitas no passado, papo furado de sempre. Mas o pior é o aceite de bandas brasileiras a esse tipo de ideia, tentando ‘adaptar’ essas falas para cá, sendo uma cópia plástica de conceitos importados idiotas”.
Enrique destaca que esse tipo de conduta pode se intensificar no atual momento político nacional e internacional, no qual há uma ascensão da extrema-direita. “Junte isso a esse ‘despertar conservador’ que vem acontecendo há algum tempo e temos algo ainda mais idiota: conservadores com ideias furadas de século passado, geralmente apoiados pela religião, mas que são ‘black metal’ ou outra denominação sonora de música extrema, que teria como base o rompimento com a sociedade e pensamento religioso. Dualidade ou falta de caráter?”, questiona.
Bacharel em Direito e em Administração de Empresas, Enrique também vende camisetas para lojas e bandas. Ele conta que já houve pedidos de materiais de bandas neonazistas em seu estabelecimento, mas que, quando isso ocorre, busca alertar os clientes. “Geralmente [é] sem muita instrução. Já pediram tipo de bandas como Absurd. Mas quem gosta disso não se aproxima de nós, ainda bem”.
O músico também explica que muitos indivíduos ouvem bandas de ideais nazifascistas e dizem gostar apenas da sonoridade, não das letras. “O que mais me assusta é quando ouvimos a desculpa esfarrapada: ‘mas gosto só pelo som’, como já ouvi e vi várias vezes. Como assim? A parte lírica de uma letra é importante, não acredito que as pessoas sejam idiotas a ponto de não se preocupar com letra de som, ainda mais nesse contexto”. Autor da música “Pau no Cu do Black Nazista”, composta em 1998, Enrique afirma que a canção não perdeu a atualidade. “Apesar de 20 e poucos anos passados, ainda persiste e tem significado sobre meu posicionamento”.
O “rock contra o comunismo” e a cooptação de jovens
De acordo com o professor estadunidense Alexander Reid Ross, pesquisador do Centro de Análises da Direita Radical (CARR), da Universidade de Portland, a apropriação de culturas underground como o punk e o metal é “vital para o movimento fascista moderno”. Reid Ross explica que na década de 1970, diante de uma crise econômica sob o governo de centro-esquerda do Partido Trabalhista, no Reino Unido, membros do partido fascista National Front decidiram cooptar jovens rebeldes, sem expectativas no futuro, inseridos em culturas urbanas.
Assim, começaram a surgir bandas que abordavam, em suas letras, a simpatia dos membros pelo nazismo e pelo fascismo. Em 1982, foi criado o festival Rock Against Communism (“rock contra o comunismo”, conhecido pela sigla “RAC”), em oposição ao Rock Against Racism (“rock contra o racismo”), que era organizado por movimentos de esquerda. O RAC se tornou, mais tarde, um movimento que incluía selos, fanzines e bandas.
Em 1987, o militante neonazista ítalo-britânico Nicola Vincenzo Crane e o músico inglês Ian Stuart Donaldson, vocalista e guitarrista da banda Skrewdriver, criaram a distribuidora Blood & Honor, cujo objetivo era divulgar materiais de bandas nazifascistas. Com o passar do tempo, a Blood & Honor se espalhou por vários lugares do mundo e lançou material de bandas neonazistas de black metal, embora fosse mais voltada ao oi!, subgênero que mistura punk rock e ska.
*: nome fictício utilizado para preservar a identidade da fonte.
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