Arqueologia das ciências humanas: o objeto das ciências humanas

Por André Francisco Marques de Almeida e Weiny César Freitas Pinto
Ilustração por Norberto Liberator 

A epistemologia das ciências humanas é o campo de estudo que visa responder questões relativas à natureza científica, ou não, das ciências humanas. Essas questões são diversas, mas geralmente se constituem como variação e/ou derivação das seguintes interrogações gerais: Quais são os critérios de cientificidade das ciências humanas? Que tipo de método essas ciências utilizam? Qual a fertilidade de tal método, isto é, qual sua capacidade de dizer a verdade a respeito de seu objeto? Quais são as condições de possibilidade da existência de tal campo científico particular chamado “ciências humanas”? Qual é o objeto que somente estas ciências podem apreender?

Este texto pretende responder a esta última questão, “qual é o objeto das ciências humanas?”, a partir da perspectiva bastante circunscrita e delimitada da obra As palavras e as coisas (1966), do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984); mais especificamente a partir das três primeiras seções do capítulo X da obra, em que, dentre outros, ele aborda esse problema.

Vale chamar atenção para o fato de que a perspectiva de Foucault inscreve-se numa tendência epistemológica muito particular, aquela que investiga as ciências humanas do interior das próprias ciências humanas, em certa oposição àquela reflexão epistemológica que as investiga “de fora”, como, por exemplo, o caso da maioria das investigações feita pela chamada “filosofia da ciência”, principalmente a de tradição anglo-saxã.

Convém dizer, desde já, que a posição de Foucault é contrária à ideia de uma investigação epistemológica pensada nos termos exclusivos de objetividade do conhecimento. Assim, o filósofo vai na contramão de uma análise que pretenda investigar se tal conhecimento é objetivo ou não; o que ele propõe é investigar o modo de ser dos saberes, “seu enraizamento nessas condições de possibilidade que lhes dá, na história, a um tempo, seu objeto e sua forma” (FOUCAULT, 1999, p. 479).

Também vale mencionar que Foucault concebe as ciências humanas numa certa posição de precariedade epistemológica, e que essa posição não se deve, como em geral estamos acostumados a pensar, à suposta “densidade” de seu objeto; com isso, o filósofo se opõe a um movimento muito comum, tanto em seus dias como nos nossos, que é o de mistificar uma complexidade do objeto das ciências humanas como justificativa para os resultados “relativos” de suas investigações.

Do objeto das ciências humanas: arqueologia e “epistémê”

Já no primeiro parágrafo do referido capítulo Foucault nos oferece concisamente uma resposta ao nosso problema: as ciências humanas é um conjunto de discursos que “toma por objeto o homem no que ele tem de empírico” (Ibid. p. 475). Entretanto, essa resposta precisa ser mais bem desenvolvida, já que é célebre a tese foucaultiana que anuncia o homem como “invenção recente” – bem como a sua “morte” –, e que também não é óbvio o sentido de “empírico”, citado acima.

Para compreendermos a posição do filósofo acerca das ciências humanas devemos pensar em um nível arqueológico. A arqueologia é como Foucault chama o seu método que busca encontrar os a priori históricos da formação da realidade, pensada em termos de discurso, que busca a epistémê, o solo comum que nos permite compreender as condições de possibilidade e os limites de nossos discursos (de nossa apreensão do real). Foucault possui uma visão não linear da história, compreendendo as epistémê como blocos de ruptura. A epistémê moderna é a que permite pensarmos a realidade como formação de discursos e igualmente as ciências humanas e o seu objeto, isso porque é uma reconfiguração do campo epistemológico moderno que permite o surgimento das próprias ciências humanas e do homem como objeto de saber científico – daí a noção acima mencionada de “invenção recente do homem”.

O triedro dos saberes

Assim, ao falarmos do objeto das ciências humanas, precisamos mencionar o surgimento desse objeto e, para isso, convém ter em mente a representação que Foucault faz da epistémê moderna: devemos visualizá-la como um triedro dos saberes, uma forma geométrica constituída por três eixos fundamentais: o eixo das ciências exatas – em que se pode incluir a matemática e a física – , o eixo das ciências empíricas da causalidade – em que se pode incluir a biologia, a economia e a filologia – e finalmente, o eixo da reflexão filosófica – que Foucault caracteriza como sendo as analíticas da finitude. As ciências humanas – que para Foucault são constituídas pela sociologia, psicologia, e com algumas ressalvas, pela literatura e pela história – são ciências volúveis porque ocupam o espaço volumoso definido por esses três eixos.

O objeto das ciências humanas: a representação

É na relação com as ciências empíricas, acima referidas, que o objeto das ciências humanas aparece em sua clareza máxima. Foucault nos introduz à compreensão desse objeto por meio de um problema que hoje pode nos parecer descabido, mas cuja formulação é bastante fecunda: Por que não se pode considerar os estudos da anatomia ou da fisiologia humanas como ciências do homem? Foucault retoma sua perspectiva arqueológica para responder e justificar essa separação e a partir dessa pergunta, aparentemente simples, fornece a resposta ao nosso problema, em uma palavra, o objeto das ciências humanas é a representação, representações que são: “verdadeiras ou falsas, claras ou obscuras, perfeitamente conscientes ou embrenhadas na profundidade de alguma sonolência, observáveis direta ou indiretamente, oferecidas naquilo que o próprio homem enuncia ou detectáveis somente do exterior;” (Ibid., p. 486).

Mantendo-nos no capítulo referido, o que podemos elaborar a respeito do objeto das ciências humanas é que a representação é “um fenômeno de ordem empírica que se produz no homem” (Ibid., p. 503), mas que não deve ser confundida com a consciência – as representações podem ser tanto conscientes quanto inconscientes[1].

Para Foucault, é sobretudo em relação às superfícies de projeção das ciências empíricas – ciências cujo objeto é a Vida, o Trabalho e a Linguagem – que as ciências humanas se constituem e constituem o seu objeto. Temos assim três regiões epistemológicas: a região psicológica, a região sociológica e a região da linguagem. A região psicológica tem lugar onde o ser vivo – objeto da biologia – se abre à possibilidade da representação. A região sociológica tem o seu lugar na representação que os indivíduos fazem da sociedade em que vivem – a maneira como o indivíduo representa o modo como a sociedade funciona, como é dividida, quais são suas regras etc.; por fim, a região da linguagem tem o seu lugar na “análise dos vestígios verbais que uma cultura ou um indivíduo podem deixar de si mesmos” (Ibid., p. 492).

O objeto das ciências humanas é sempre uma reduplicação ao nível da representação do homem como objeto das ciências empíricas, ele é como que tomado de empréstimo de uma certa faceta dessas ciências. Por isso Foucault, depois de ponderar entre os prefixos “ana” e “meta”, considera a posição epistemológica das ciências humanas no triedro dos saberes como uma posição “hipoepistemológica”, enfatizando a necessidade de retirar o teor pejorativo deste último – que poderia nos levar a pensar em uma posição “inferior” em relação a das ciências empíricas –  e ressaltando o caráter de reduplicação do objeto das ciências empíricas vistas do nível arqueológico. Assim, é sempre a representação da Vida, do Trabalho e da Linguagem que é o objeto primordial das ciências humanas.

As ciências humanas, nos diz Foucault, operam através de três modelos constituintes tomados de empréstimo da superfície de projeção dos saberes das ciências empíricas. Esses três modelos são como pares de “categorias” que servem para delimitar mais especificamente cada objeto de cada ciência humana e o método a ser utilizado. Da biologia, surgem as categorias “função e norma”; da economia, empresta-se as categorias “conflito e regras”; por fim, da superfície de projeção da filologia, as ciências do homem tomam as categorias “significação e sistema”.

Foucault aponta que no decorrer das transformações que as ciências humanas sofreram desde o seu nascimento, a dimensão da representação passou a se associar cada vez mais ao inconsciente dos sujeitos.  O filósofo nos dirá que houve um movimento histórico em três etapas que priorizou, ora um modelo, ora outro. Assim, ocorreu um movimento duplo de “declive” no campo epistemológico que conduziu

as ciências humanas de uma forma mais densa de modelos vivos a uma outra mais saturada de modelos tirados pela linguagem. Esse desvio, porém, foi duplicado por outro: aquele que fez recuar o primeiro termo de cada um dos pares constituintes (função, conflito, significação) e fez surgir com mais intensidade a importância do segundo (norma, regra, sistema)”. (Ibid., p. 498)

Como podemos ver, Foucault não compreende a representação como mero objeto de saber das ciências humanas, mas também como sendo simultaneamente a sua condição de possibilidade, o campo no qual elas se estendem. Nesse sentido, se pudermos oferecer uma resposta sumária à questão que aqui analisamos – Qual o objeto das ciências humanas segundo Foucault? –, diremos que para o filósofo, o objeto das ciências humanas é o homem, naquilo que pertence à sua capacidade de representação, aquilo que ele pode representar – condição de possibilidade do saber – de si mesmo – objeto do saber.

Foucault é sem dúvida um dos filósofos de grande impacto em diversas disciplinas das ciências humanas, seu pensamento explora temas de altíssima relevância contemporânea, que muitas vezes foram apagados ou negligenciados pelo olhar científico e isso faz com que seu nome seja muito associado à certo tipo de crítica política – claro que que suas análises sobre os poderes e as instituições sociais são importantíssimas –; no entanto, a sua reflexão, especialmente esta, a da chamada fase arqueológica, é essencial para a nossa compreensão da epistemologia das ciências humanas, ainda que na prática, saber e poder, epistemologia e política, se apresentem quase indissociavelmente. 

[1] Aqui o termo “inconsciente” tem um significado mais geral, como tudo aquilo que não está, momentaneamente ou não, presente à consciência dos sujeitos. Portanto, não falamos aqui necessariamente do inconsciente propriamente freudiano, lacaniano ou psicanalítico em geral.

Este texto é o resultado adaptado do trabalho avaliativo final da disciplina “Epistemologia das ciências socias”, ofertada pelo Prof. Dr. Weiny César, para o curso de Ciências Sociais, UFMS, primeiro semestre de 2020. O trabalho de adaptação contou com a supervisão direta do referido professor.

Referências bibliográficas

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.  (Col. Tópicos). pp. 475-536.

Weiny Freitas

Colunista

Professor de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas

André Almeida

Colunista

Graduando do sétimo semestre do curso de Filosofia da UFMS, interessado na pesquisa da área de epistemologia das ciências humanas e filosofia contemporânea.

Norberto Liberator

Editor-chefe

Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

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