O que o Vietnã tem a nos ensinar sobre pandemias?

Por Gustavo Facio-Silva

Se nas bandas ocidentais temos uma disputa entre Brasil, Reino Unido e Estados Unidos para saber quem tem o pior desempenho na contenção da pandemia de COVID-19, nas bandas orientais a disputa acontece pelo lado oposto, e busca-se entender como e quem teve a melhor estratégia de prevenção aos danos do vírus que vem destruindo milhões de famílias ao redor do globo.

Quase que numa corrida sem sentido, a mídia imperialista corre ao tentar a todo custo encontrar quem é o grande vencedor no combate à pandemia. Isso por que há uma necessidade de encontrar o “vencedor” entre eles – países imperialistas – e não entre países controlados por partidos comunistas.

Tentaram inicialmente com a Coreia do Sul, logo após com o Japão – que segurou a todo custo o número de testes para não influenciar no adiamento dos Jogos Olímpicos de 2020 -, mas aos passos que a pandemia evoluía, os números desses países já não eram tão mais promissores.

Recentemente, o foco da mídia internacional mudou e colocou no centro dos holofotes países como a Alemanha, por sua baixa mortalidade, e a Nova Zelândia que anunciou uma simbólica vitória contra o vírus devido a ausência de novos casos. Entretanto, a China, que arquitetou um plano de contingência muito mais sólido e eficaz que muitos países ocidentais, continua sendo reportada por muitas vezes como a grande vilã da pandemia.

Mas este não é um artigo sobre a China, que apesar de todo o esforço teve uma mortalidade de 6% com 4.634 óbitos. Este artigo é sobre um de seus vizinhos ao sul, que mesmo com os resultados inimagináveis, tem de forma muito tímida aparecido nos artigos dos grandes jornais ocidentais. O caso do Vietnã é tão bem sucedido que o país não teve nem um óbito por COVID-19 reportado (0% de mortalidade até agora), 328 casos confirmados, sendo destes apenas 49 casos ativos. Além disso, na primeira quinzena de maio, o Vietnã entrou numa fase de reabertura tão promissora que deve evitar que o país entre em recessão.

Mas por que o Vietnã conseguiu controlar os casos de COVID-19 e a circulação do vírus tão bem? Ainda se comparados com vizinhos “mais ricos” como a Coreia e o Japão. A resposta mora na relação histórica do país com os surtos de vírus na região e de como o país passou a levar a sério, de forma científica, a iminência de pandemia após o surto de SARS de 2003.

O Vietnã e o SARS (2003)

O ocidente se apoia na ideia de que o controle à pandemia tem sido difícil pela falta de experiência, e que ninguém poderia prever que seria tão grave. Isso porque a maioria dos países ocidentais não tem na memória recente algo como a pandemia de COVID-19. A última pandemia neste nível foi da Gripe de H3N2, talvez mais conhecida por seu nome extremamente xenófobo de “Gripe de Hong Kong”. Aliás, os países ocidentais são ótimos para cunhar termos xenófobos e racistas, como “Gripe Asiática”, “Gripe de Hong Kong”, “Gripe de Fujian” e mais recentemente a tentativa de utilizar o termo “Vírus Chinês” ou “Vírus de Wuhan” para se designar a COVID-19. 

Há uma clara tentativa de diversos países de culpabilizar os países asiáticos pela origem de epidemias, de forma a retirar total culpa dos países norte-americanos/europeus. Além disso, não há interesse desses países para com as estratégias de saúde pública utilizadas pelos países asiáticos, já que são muitas vezes vistos como países inferiores.

 As “potências” mundiais até veem as economias do sudeste asiático como importantes e de larga expansão, mas continuam a tratá-las como países de terceiro mundo. Desta forma, esses países não teriam o que ensinar ao ocidente e sim apenas aprender. Normalmente, esses países  acreditam que, por serem nações economicamente mais avançadas, podem facilmente controlar qualquer nova adversidade. 

A mídia imperialista seguiu essa ideia em 2020, inicialmente ignorando diversas estratégias de sucesso que vinham do sudeste asiático por minimizar a situação da pandemia, tratando como se fosse uma epidemia apenas para asiáticos. Agora, ignora novamente para evitar a exposição do fracasso do mundo ocidental na liderança contra nova a pandemia, já que a posição econômica de diversos países não protegeu suas populações do vírus. E muito pelo contrário, países como Vietnã conseguiram resultados excelentes com um dos planos de combate mais econômicos dessa pandemia.

O sucesso do Vietnã na contenção de epidemias não é algo novo e nem mesmo o coronavírus é uma singularidade para os vietnamitas. Recentemente, vários países do oriente já tiveram surtos relacionados ao MERS-CoV – Coronavírus da Síndrome Respiratória do Oriente Médio -, mas talvez o caso mais lembrado nesta pandemia seja o surto de SARS causado pelo SARS-CoV – Coronavírus Relacionado à Síndrome Respiratória Aguda Grave -, atualmente chamado de SARS-CoV-1, já que o vírus causador da COVID-19 foi nomeado SARS-CoV-2. 

O surto de SARS, com início no ano de 2003, deixou o mundo em alerta para a possibilidade de uma pandemia de um vírus contagioso com mortalidade moderada, além apresentar ao planeta uma nova faceta dos coronavírus, agora como agentes causadores de síndromes respiratórias graves. Entretanto, no que podemos ver hoje, nem todos os países aprenderam com essa experiência da década passada. 

Após 38 funcionários de um hospital serem infectados por um único paciente, o governo do Vietnã assumiu que o vírus era extremamente contagioso e medidas severas deveriam ser tomadas a fim de evitar o avanço do surto. 

 O país na época formou um comitê de direção de crise, liderado pelo ministro da Saúde, que ficava em constante contato com o primeiro-ministro. O país também criou uma estratégia de enfrentamento que envolveu os departamentos de transporte, alfândega, finanças, educação e do interior, ouvindo sempre especialistas médicos. Assim, foi-se criado um sistema de triagem de imigração na fronteira e nos aeroportos para detectar qualquer pessoa com temperatura corporal alta, sinal comum em pacientes com SARS e também COVID-19. 

Os pacientes infectados com o SARS-CoV-1 foram isolados em dois hospitais preparados para tal em Hanói e outros dois hospitais capacitados como centros de isolamento, em caso de necessidade. O Instituto Nacional de Higiene e Epidemiologia do Vietnã instruiu os profissionais de saúde a rastrear e monitorar centenas de pessoas que de alguma forma tinham contato com os trabalhadores ou pacientes dos hospitais, visitando cada uma dessas pessoas diariamente.

O Vietnã foi o sexto país da região mais afetado no surto de SARS em 2003, com mortalidade de 7,9%. O bom trabalho do país durante o surto fez com que a OMS, em abril de 2003, declarasse o Vietnã como primeiro país a ter controlado o surto, isso depois de 20 dias sem nenhum novo caso de SARS e dois meses depois do primeiro caso no país.

Com o passar desse evento, as autoridades vietnamitas ficaram mais sérias sobre a possibilidade de novos surtos de SARS ou da circulação de outros coronavírus vindos da vizinha China. O governo local na época falou que o maior desafio era identificar e isolar rapidamente os pacientes, um aprendizado importante aplicado no combate a COVID-19.

O Vietnã e a COVID-19 (2020)

A vigilância contínua do Vietnã tem seus motivos, sua posição geográfica e sua economia. O país não é rico como seus vizinhos, mas ainda assim tem uma capilaridade na economia do sudeste a leste asiático. Isso faz com que o Vietnã tenha milhares de voos diários para outros países como a China, epicentro inicial da pandemia, Tailândia, Coreia do Sul, Japão e outros países com milhares de casos de COVID-19. Apesar de estar, de forma relativa, fisicamente distante de Wuhan, o Vietnã também divide fronteira com duas províncias chinesas que foram afetadas nesta pandemia, as províncias de Yunnan e Guangxi.

Essa conexão dos países, e o fluxo de vietnamitas para fora e dentro do país, faz com que o governo local tenha muito cuidado aos primeiros sinais de surtos, especialmente pelo fato do Vietnã não ter os mesmos recursos financeiros dos vizinhos para enfrentar crises.

Aqui entra a necessidade de efetivamente escutar a Ciência, e não só na área médica, e o Vietnã parece ter feito isso muito bem ao se nortear pela saúde pública e economia de saúde, repetindo a boa prática de 2003. Uns dos princípios básicos da economia de saúde, o princípio da eficiência, discorre sobre entregar os melhores resultados em saúde mesmo com os recursos escassos, ou seja, os recursos fornecidos para a saúde devem ser usados e aplicados de forma eficaz para maximizar os resultados – gerar mais saúde para a população pelo menor custo. Entretanto, para tais resultados há muito planejamento, organização e agilidade.

Com a evolução dos casos na China, o governo vietnamita começou a traçar um plano, ainda em dezembro de 2019, contra uma possível epidemia. Em janeiro o Vietnã se tornou um dos primeiros países fora da China com casos COVID-19 notificados. Um dia depois e com apenas 2 casos, o governo ativou o Centro Emergencial de Prevenção de Epidemias, dando início a uma resposta centralizada e que viria a ser seguida e respeitada por todas as regiões do país. Nesse mesmo dia, todos os vôos para e de Wuhan foram cancelados pela agência de aviação civil local.

A rápida propagação do vírus no mundo fez com que o governo vietnamita reconhecesse que não teria dinheiro e nem estrutura para fazer uma testagem massiva da população – 95 milhões de habitantes – e por isso medidas agressivas teriam que ser tomadas a fim de evitar gastos desnecessários. Ainda em janeiro, o Ministério da Saúde criou diversos times para responder imediatamente às regiões que fossem afetadas, para criação de sítios de quarentena, operações de desinfecção e transporte de pacientes e de pacientes suspeitos.

Em 1º de fevereiro, o país colocou em prática mais etapas do plano traçado e determinaram o fechamento de todo o fluxo aéreo entre Vietnã e China. O governo também decidiu manter todas as escolas fechadas até o final de março e posteriormente estendeu o prazo até o começo de maio.  Dias após, o Vietnã fechou sua fronteira com a China para o comércio e as viagens e em março, o uso de máscaras em público se tornou obrigatório em todo o território nacional.

As regiões entravam em lockdown de acordo com os casos confirmados e mais 100 mil pessoas ficaram em quarentena em campos militares preparados, hotéis, escolas e em casas com monitoramento rigoroso do governo. Em 22 de março, o governo do Vietnã baniu a entrada de estrangeiros no país. Qualquer vietnamita que estivesse voltando para o Vietnã teria que passar pela quarentena de 14 dias e só poderia sair após testar negativo repetidas vezes. Foram também organizados pontos de distribuição de arroz gratuito para quem não tivesse condições de pagar. O governo ainda ordenou às farmácias a reportar clientes que compravam medicamentos para gripe ou resfriados, já que os sintomas são parecidos com aqueles com COVID-19.

Todo esse plano de contingência funcionou extremamente bem e permitiu ao país ter tempo para receber testes suficientes para a demanda. Até agora, o país realizou 275 mil testes, numa média de 838,4 testes para cada caso positivo. Número bem superior ao do Brasil, que realizou 1,8 testes por cada caso positivo. Alguns então falaram sobre a possibilidade de subnotificação, mas não há evidências de subnotificação e também não há aumento anormal no número de óbitos no país. Algumas funerárias comentaram que os óbitos têm inclusive caído pela diminuição de acidentes de trânsito.

Pode-se perceber que apesar de duro, o plano do Vietnã foi muito mais econômico e apresentou melhores resultados do que o resto do mundo. O país não teve nenhum óbito (até 31/05/2020), apenas 328 casos confirmados e os únicos novos casos foram de repatriados e não de transmissão comunitária. O Vietnã agora volta a economia mundial muito antes de todos seus vizinhos, com pouco risco de recessão, mostrando que o combate sério a epidemias também leva a bons frutos econômicos. Até as escolas voltaram a funcionar na primeira semana de maio enquanto os países do ocidente consideram cancelar de forma presencial todo o ano letivo.

Apesar da mídia até escrever sobre o Vietnã, parece que o algoritmo não deixa que esses textos cheguem tão facilmente até nós. Com um tanto de ironia, a mídia imperialista esconde novamente o vencedor da guerra, o Vietnã. Todavia, a cada dia fica mais evidente que teremos um déjà vu e que muito breve ouviremos novamente algo como o que foi dito por Pascale Brudon, representante da OMS no Vietnã, em 2003: “O Vietnã conseguiu mostrar ao mundo que há esperança de que a epidemia possa ser contida”.

Gustavo Facio-Silva

Colunista

Mestre e pesquisador na área de saúde pública. Defensor da ciência, entusiasta de bioestatística e com interesse em estudos epidemiológicos e de disparidades em saúde.

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