A Escola de Zagorsk e o caráter emancipador da psicologia
- 24 de maio de 2020
Por Vitória Regina
O presente texto tem por objetivo realizar uma discussão sobre a defectologia (1), ramo da psicologia que tradicionalmente estuda a deficiência – física ou mental – em crianças, nos períodos entre a Rússia czarista e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – trajetória esta que nos levará a Zagorsk. Neste sentido, se realizarão alguns apontamentos sobre as escolas para pessoas cegas e surdas nos períodos históricos em questão. O que se busca aqui, sem ignorar o limite de espaço, é mostrar como a psicologia pode e deve ser utilizada em prol da emancipação humana. Por fim, não se pretende apresentar uma historiografia completa do momento histórico mencionado, e sim discutir os valores e as prioridades em relação à vida humana em dois modelos de sociedade.
As primeiras escolas de educação especial na Rússia
A primeira escola destinada a trabalhar com pessoas cegas na Rússia foi fundada em 1807 e em 1811 foi fundada a primeira escola para surdos – em comparação, no Brasil, a primeira escola para surdos data de 1857. A pedidos do Czar Alexandre I, Valentin Haüy fundou e trabalhou nessas escolas no período entre 1806 a 1817.
Após treze anos de funcionamento, as escolas russas supracitadas foram fechadas e novas instituições escolares voltadas para pessoas cegas e surdas foram abertas, sobretudo entre as décadas de 1860 e 1880. De acordo com Netto e Leal (2013), o interesse em abrir essas instituições se deu por uma espécie de sentimento de caridade que vigorava em um determinado setor da sociedade russa, bem como o avanço científico e a possibilidade de transformar sujeitos com algum tipo deficiência em produtivos – viabilizando a venda de sua força de trabalho – à sociedade.
Em 1886 são publicados os primeiros artigos em braile na Rússia. No mesmo ano, a revista Russkii Slepets (O homem russo cego) é criada e posteriormente muda o nome para Slepets (O homem cego). Após a publicação deste periódico, a sociedade científica russa começa a interessar-se na discussão a respeito da cegueira (2). Em 1888, uma nova revista para cegos foi publicada, intitulada Dosug Slepykh (Lazer dos cegos) e impressa em braile. A revista apresentava como era a vida das pessoas cegas em outros países e em outras culturas, mas o conteúdo se limitava a tratar somente a vida pessoal, jamais fez qualquer menção à educação especial (3).
Em 1908, uma escola privada que visava a educação de pessoas consideradas, nos padrões da época, ”retardadas e anormais” (4), foi aberta. Porém, após a Revolução de Outubro de 1917, essa escola foi estatizada e teve seu nome alterado para Dom Izucheniia Rebenka (Casa de Aprendizagem da Criança) e passou a ser cuidada pelo Narkompros (Comissariado do Povo de Educação).
O termo defectologia (defektologiia) foi introduzido na cultura russa em 1912 graças ao psiquiatra Vsevolod Petrovich Kashchenko e a utilização desta terminologia foi dada a fim de diferenciar pessoas com alguma deficiência de outras pessoas que eram lidas como superdotadas.
Em 2020 a utilização da palavra ”defectologia” pode gerar estranhamentos, mas no início do século passado, conforme explicam Netto e Leal (2013):
O termo ”defeituoso” não remetia a práticas e ideias preconceituosas como ocorre atualmente, o que fez com que o grupo de autores usasse a palavra defektivnii, que logo foi adotada por outros cientistas russos (p.76-77).
No início do século XX, em todo território russo existiam vinte e quatro escolas para pessoas cegas ou com baixa visão. Em 1917, ano da revolução bolchevique, o número de instituições destinada às pessoas com deficiência visual saltou para trinta e cinco.
Por fim, é válido reforçar que as aberturas dessas instituições, no período czarista, não se deram por uma preocupação com a autonomia de crianças e adultos russos, mas sim na tentativa de torná-los produtivos ao meio que integravam. A preocupação em emancipar esses sujeitos se dará posteriormente, já durante a União Soviética.
Vigotski e a defectologia
Falar de Vigotski é, também, falar da Revolução de Outubro (5). É refletir a respeito de como o modo de produção de uma determinada sociedade determina os modos de produção e reprodução da vida material.
Nas últimas décadas – principalmente a partir da década de 1970 – o nome do teórico soviético foi bastante mencionado no Ocidente, sobretudo na área de educação. Entretanto, leituras equivocadas de Vigotski foram realizadas, bem como traduções que aparentemente tiveram como propósito a retirada do marxismo de sua teoria (6). Embora Vigotski tenha seu local de destaque no Ocidente, não se deve cometer o erro crasso de colocá-lo como o único responsável na elaboração e desenvolvimento da teoria psicológica histórico-cultural (7).
Em 1922, Vigotski é convidado a integrar como diretor no Departamento de Gomel de Instrução do Povo e neste mesmo ano começa a atuar como psicólogo, além de ministrar aulas de lógica e psicologia no Colégio Pedagógico (Pedagogicheskoe Uchilishche).
Vigotski muda-se para Moscou em 1924 e a convite de Konstantin Nikolayevich Kornilov (8) inicia suas atividades no Instituto de Psicologia Experimental de Moscou. Em julho, Vigotski inicia seus estudos sobre a defectologia e assume o cargo de diretor do subdepartamento de proteção social e jurídica de menores do Comissariado do Povo para Instrução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (9). Em outubro, torna-se professor da disciplina de Introdução à Psicologia no Instituto de Pedologia e Defectologia de Moscou (10). Além disso, passa a lecionar na Academia de Educação Comunista (BARBOSA, 2015).
Já adoecido (11), Vigotski e Danjushevksy iniciam os estudos com crianças com algum tipo de dificuldade na fala no Instituto Experimental de Defectologia. As repartições desse instituto se deram da seguinte maneira: serviços de atendimento para crianças cegas e/ou surdas; escola-auxiliar para crianças com dificuldades de aprendizagem e um departamento clínico destinado a diagnóstico.
As escolas na União Soviética
Os trabalhadores do colégio interno de Zagorsk estão construindo pontes do mundo dos surdos e cegos ao mundo das pessoas que ouvem e veem. Esse triunfo sobre as dificuldades e caprichos da cegueira, surdez e deficiências na fala deu-nos, aos prisioneiros da escuridão e do silêncio, vastas oportunidades para comunicação com o mundo. (Sergei Sirotkin)
Após a Revolução de Outubro de 1917, em um caráter diferenciado do período czarista, as escolas destinadas às pessoas cegas e surdas assumem um novo compromisso: emancipação do gênero humano. Influenciados fortemente por Vigotski e por outros pesquisadores soviéticos, a partir de possibilidades concretas essas instituições dedicaram-se ao trabalho de fazer com que pessoas que até então eram lidas como ‘’descartáveis’’ ou sem contribuição superassem suas limitações.
Nos anos seguintes à vitória da Revolução, mormente entre 1918 e 1920, a URSS abriu institutos para formação de professores que trabalhariam com crianças acometidas por alguma deficiência. E em junho de 1920 ocorreu o Primeiro Congresso de Toda Rússia pelo Combate à Defectividade Infantil. (NETTO e LEAL, 2013). Nos primeiros anos de Revolução, dois nomes apareceram com frequência quando o assunto era educação e educação especial: Ivan Afanasievich Sokolianski e Lev Semionovich Vigotski.
A primeira instituição de educação para cegos e surdos na União Soviética foi inaugurada em 1923 na cidade de Kharkov, sendo Ivan Afanasievich Sokolianski seu fundador. Nesta escola estudou Olga Ivanovna Skorokhodova (12) que viria a doutorar-se em Psicologia (13). Posteriormente trabalhou no Instituto de Defectologia da Academia de Ciência Pedagógicas na União Soviética e também na Escola de Zagorsk. Sendo esta um centro de desenvolvimento de tecnologias destinada às crianças cegas e surda, a escola funcionou até 1938.
Tais elementos podem ser constatados na preocupação de Sokolianski em propiciar a apropriação das manifestações faciais das emoções pelos estudantes do instituto. Sabe-se que a ”mímica expressiva” tem um importante papel no processo de comunicação entre os videntes e essa é a uma forma de comunicação que pode facilitar a vida e a relação dos cegos-surdos de nascença, que nunca aprenderam a expressar mímica e pantomimicamente suas emoções (NETTO & LEAL, 2013, p. 80-81).
Neste sentido, durante os quinze anos de funcionamento da Escola de Kharkov, Sokolianski dedicou-se ao projeto de ensino que permitisse que crianças cegas manifestassem diversas expressões emocionais, aprendendo, desta forma, uma nova forma de comunicação.
A Escola de Zagorsk foi aberta em 1963, tendo como expoente Aleksandr Ivanovich Meshcheryakov. Guita Lvovna Vigodskaia (14) afirma que a Escola de Zagorsk tinha um convênio com o Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou. Sendo assim, tal escola assumia um caráter científico que buscava desenvolver métodos de ensino e aprendizagem de crianças com deficiência.
(…) o profissional, ao trabalhar com a criança com deficiência compreenderia que independente da deficiência, essa criança se desenvolve como qualquer outra, porém, de um modo particular (NETTO & LEAL, 2013, p. 79).
Se propôs em Zagorsk um atendimento individualizado para cada criança, ou seja, cada aluno ali presente tinha a atenção integral do professor, além de instrumentos adaptados que permitiam a comunicação entre eles (15).
Conforme mostrado no documentário feito pela BBC de Londres (16), na Escola de Zagorsk, comunicação era poder e os professores tinham o compromisso de emancipar cada sujeito que passasse pela instituição. A ordem do dia era a possibilidade de superar as limitações impostas através de instrumentos adaptativos e pelo desenvolvimento cultural.
Tendo em vista a ausência ou comprometimento dos canais de sentido mais importantes (visão e audição) os cego-surdos apropriam-se do mundo que os circunda principalmente pelo tato, ou seja, o tato é o alicerce principal sobre o qual se constitui seu psiquismo. Por mais complexas que sejam as funções mentais e os processos que emergem no curso do desenvolvimento, para muitos tais funções e processos são simples e comuns por serem observados cotidianamente no desenvolvimento da criança ”normal”. No entanto, para uma criança desprovida da visão, audição e fala a situação é bem diferente: primeiro, pelo fato mencionado da criança com surdo-cegueira formar todas as suas ideias sobre o mundo pelo toque e manipulação, porque muitas vezes essa criança é privada dos meios normais de contato com as pessoas à sua volta (NETTO & LEAL, 2013, p. 83)
Em Zagorsk, o foco não era ressaltar a deficiência das crianças e isolá-las da da realidade, pelo contrário, ensinava-as a desenvolver outros sentidos, utilizando um procedimento pedagógico especial e, também, instrumentos culturais especiais, como, por exemplo, aparelhos de ampliação de sons ou o alfabeto manual (17). Natasha Krilatov, que foi aluna da escola de Zagorsk, menciona Vigotski como alguém que mudou a sua vida quando era estudante, relata que:
Lá, em Zagorsk, diferente de quando vim para a minha casa, eu aprendi a me comunicar com todos (professores, funcionários); aprendi como compreender as ideias confusas que fazia do mundo naquela época. Eles me ajudaram a viver melhor no mundo, apesar de não ter sido um processo fácil (BBC, 1992).
Vigotski pontuava que a origem dos processos psicológicos superiores e do psiquismo se dava a partir das relações externas ao sujeito, em que “o homem não é só um produto de seu meio ambiente; também é um agente ativo na criação desse meio ambiente” (LURIA, 1992). Os aspectos culturais e históricos são fundamentais às estruturas sociais que organizavam a sociedade e ao mesmo tempo, dava condições para se reformularem ao longo do tempo por meio de instrumentos utilizados pelo sujeito mediado por formas psíquicas superiores para auxiliar seus meios de sobrevivência (18).
(…) poderíamos dizer que todas as funções psicológicas superiores formaram-se não na biologia nem na história da filogênese pura – esse mecanismo, que se encontra na base das funções psíquicas superiores, tem sua matriz no social. Poderíamos indicar o resultado fundamental a que nos conduz a história do desenvolvimento cultural da criança como a sociogênese das formas superiores de comportamento. A estrutura das formas complexas de comportamento da criança consiste numa estrutura de caminhos indiretos, pois auxilia quando a operação psicológica da criança revela-se impossível pelo caminho direto. Porém, uma vez que esses caminhos indiretos são adquiridos pela humanidade no desenvolvimento cultural, histórico, e uma vez que o meio social, desde o início, oferece à criança uma série de caminhos indiretos, então, muito frequentemente, não percebemos que o desenvolvimento acontece por esse caminho indireto (VIGOTSKI, 2011, p. 864).
Caminhando para o fim, é possível perceber que as escolas de educação especial se dedicaram a emancipar todo e qualquer sujeito com alguma deficiência. Os estudos e as práticas dos teóricos soviéticos mostraram que todo aluno é capaz de aprender, considerando que o ensino e a mediação o direcionem para isso. As crianças do lar de Zagorsk e Kharkov conquistaram sua independência e foram além do que aparentemente seria permitido (19). Muitos dos estudantes de Zagorsk e Kharkov tornaram-se professores, psicólogos, filósofos, poetas.
[…] a defectologia russa/soviética ”partilha com outras ciências soviéticas a crença no domínio do social no desenvolvimento humano e na vida, [com isso] a defectologia soviética/russa estabeleceu-se como uma ciência na qual alguns aspectos são bem avançados, altamente sofisticados e originais (NETTO & LEAL, 2013, p.88 apud Grigorenko, 1998, p. 196).
Com o fim da União Soviética em 1991 e a restauração do capitalismo na Rússia, as instituições de educação especial com o caráter descrito não tiveram continuidade. Todavia, conforme ressalta Netto e Leal (2013), até 1991 a ciência soviética continuou a aprofundar estudos sobre a defectologia, mas é difícil comparar ao que foi feito entre as décadas de 1920 e 1960.
A ciência psicológica (20) desenvolvida e praticada em território soviético foi marcada pela ideologia que ali vigorava, bem como o modo de produção e reprodução da vida material e isso explica o trabalho em prol da emancipação do gênero humano. Na contramão do que estava sendo executado no ocidente, a psicologia soviética não tinha o interesse em concepções meramente psicométricas, seu exercício não resumia-se à avaliação e categorização de crianças que apresentavam alguma deficiência. Na União Soviética, a psicologia não serviu ao capital, mas à emancipação do sujeito.
Os valores e as prioridades de Vigotski e do grupo de pesquisadores soviéticos naquele momento era em relação à vida humana e seu pleno desenvolvimento. Mesmo existindo inúmeras dificuldades impostas às crianças com deficiência, isso não significa que elas estejam impedidas de se apropriarem da cultura e, desta forma, desenvolverem suas funções psicológicas superiores.
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[…] para que os sujeitos se tornassem passivos ou se resumissem a uma deficiência, como pode ser lido neste texto publicado pela Revista Badaró sobre a Escola de Zagorsk e o trabalho dos psicólogos e […]