O repórter-quadrinista que veio da quebrada
- 15 de maio de 2020
Por Norberto Liberator
Ilustrações por Fábio Faria
Alexandre De Maio foi precursor em várias frentes. Numa época em que a informação sobre rap no Brasil era escassa, ele criou a primeira revista nacional voltada ao gênero, intitulada Rap Brasil. Quando o sonho de boa parte dos quadrinistas brasileiros era desenhar super-heróis para editoras gringas como Marvel e DC Comics, o artista lançou “Os Inimigos Não Mandam Flores” (2006), trabalho autoral sobre a periferia, junto ao escritor Ferréz. De Maio começou a produzir reportagens em jornalismo em quadrinhos (JHQ) quando esta linguagem era praticamente desconhecida em terras brasileiras.
Atualmente, De Maio é diretor de audiovisual do site Catraca Livre, produz ilustrações e animações para o portal de jornalismo esportivo Goal Brasil e já produziu reportagens em quadrinhos para veículos como Fórum, Agência Pública, Caros Amigos, Veja e Folha de S. Paulo. Foi vencedor do Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo em 2013, por “Meninas em Jogo” (produção com Andrea Dip para a Pública); no ano de 2017, também venceu o prêmio italiano Amico Rom, na categoria “arte”. Com trabalhos publicados no Brasil e na França, em 2018 lançou seu primeiro livro solo, “Raul”.
Alexandre De Maio conversou com a Badaró sobre sua trajetória, projetos para o futuro e como tem sido sua produção durante a pandemia da Covid-19. Confira:
Na Rap Brasil, já existiam páginas dedicadas aos quadrinhos sobre a periferia e a cultura de rua. Podemos considerar alguns desses trabalhos já como jornalismo em quadrinhos?
Cara, no começo eu fazia alguns quadrinhos na Rap Brasil, mas acredito que ainda não era muito Jornalismo em Quadrinhos. Apesar de sempre colocar algumas informações sobre o tema no final, a parada era mais ficção mesmo, ficção baseada em fatos reais, assim. Eu fazia as duas coisas separadas, fazia matérias escritas e algumas entrevistas enquanto fazia outros trabalhos ficcionais em HQ.
Com toda essa relação à música, você costuma escutar algo para produzir? O que você ouve atualmente?
Ouço sim, cara. Eu só consigo produzir ouvindo música, a real é essa. Até tento ouvir outras coisas, mas minha criação toda foi rap, né. Então ouço muita coisa, fico até zoando que gosto de ouvir de Sidoka a Djavan. Minha playlist agora tem o disco do Sidoka, tem GOG, tem a Bivolt, tem várias músicas dos cara novos do rap aí. Ouço muito rap, sempre me atualizo ouvindo as paradas. Gosto de ficar ouvindo essas coisas recentes.
Passei muitos anos pegando os lançamentos pra ouvir, pra depois escrever os releases. Escrevia uma espécie de crítica, uns textos que não eram exatamente críticas, eram meus relatos sobre o disco. Por conta disso, não perdi esse hábito de ouvir tudo o que é lançamento.
Desde 2010, você produz matérias em quadrinhos para vários veículos, desde sites independentes a jornais e revistas da mídia hegemônica. Como foi o processo para conseguir credibilidade, tendo em vista que há um preconceito contra a linguagem das HQs que a coloca como algo menos sério?
Cara, esse lance de preconceito com o formato em JHQ, eu só fui conseguir superar quando a credibilidade veio após ganhar o prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, e depois de ter feito uma matéria na Fórum sobre exploração sexual infantil. A partir dali, eu consegui mostrar que dava pra fazer um material denso, jornalístico e foda dentro do formato de JHQ. Conseguimos ganhar prêmios com a matéria e fazer com que várias redações nas quais eu chegava, já tivessem visto aquele trabalho. Então acho que foi um grande momento.
Mas é todo um conjunto, né, cara, eu comecei ali no Catraca, depois a Fórum, depois a Agência Pública e daí consegui um espaço na Abril. Primeiro fui pelos independentes e tal, pra depois conseguir espaço nos veículos grandes. Foi esse trabalho de formiguinha mesmo, tentando vários espaços pouco a pouco enquanto suas coisas vão se somando.
Com certeza, até hoje, o trabalho mais falado e que gerou até matéria na gringa e foi tema de uma dezena, talvez, de TCCs foi o “Meninas em Jogo”
Você é pioneiro do jornalismo em quadrinhos no Brasil. O trabalho de autores como Joe Sacco te ajudou a perceber que fazer jornalismo desta forma era possível? Quando houve essa percepção?
Cara, com certeza, o trabalho do Joe Sacco foi a maior referência que eu tive. É engraçado que foi assim, em 2010 já fazia quatro anos que tinha lançado meu quadrinho. Não tava fazendo nada relacionado a isso mais, tava só trabalhando com jornalismo e não via muito onde isso ia dar, tava meio triste também por não fazer mais quadrinhos. Nessa época eu escrevia na revista Raça, fazia as matérias de capa de lá.
Ilustração para o documentário “Sabotage – O Maestro do Canão”. Por Alexandre De Maio.
Eu, sozinho, nunca tinha imaginado juntar as duas coisas. Aí, em abril de 2010, minha editora no Catraca Livre, Erika Vieira, que sabia que eu fazia quadrinhos, me propôs: “por que você não faz umas paradas de jornalismo em quadrinhos aqui e tal?”. Ela também gosta de quadrinhos. Respondi: “podemos tentar” e aí comecei. Ela me propôs porque já estávamos pensando em experimentar vários formatos. Eu ia fazer uma revista digital com fotos de exposição, com matérias sobre eventos na periferia e fazia umas coisas diferentes lá no site.
Mas foi assim, partindo da proposta da Erika que comecei a fazer. Quando fiz os primeiros, falei “puta, que legal, dá pra juntar as coisas que eu mais gosto e colocar os quadrinhos no dia a dia”, porque, por exemplo, o livro você desenha de vez em quando, né; agora, o jornalismo em quadrinhos, se você tem onde publicar, você consegue ficar fazendo direto, sempre. Então sei lá, eu já bati mais de 50 matérias em quadrinhos feitas. Desde 2010 eu não parei de desenhar, praticamente. O jornalismo em quadrinhos me deu essa possibilidade de contar dezenas de histórias diferentes e não parar de desenhar.
Você tem muitas parcerias com o escritor Ferréz, conhecido pelo trabalho focado em histórias da periferia. Há mais alguma produção conjunta em vista?
Ah, eu e o Ferréz não paramos nunca. A gente não pode nem se falar muito porque, senão, sai um projeto! A gente tem um projeto um pouco mais organizado, chamado Voadores. Inclusive, em breve devo soltar uma animação que fiz, a princípio em quadrinho. Eu fiz uma história de um capítulo e agora tô transformando isso em animação. Temos este e também estamos desenvolvendo o projeto Porcovelha, que é uma empresa de brinquedos montada pelo Ferréz e que eu ajudo com a criação dos personagens, enfim… Em breve devemos lançar algo.
Embora o trabalho de ilustrador seja solitário, o estado emocional e psicológico durante a pandemia pode influenciar. Como tem sido a produção durante a quarentena?
Cara, acho que todo artista acaba produzindo sempre quando há algo entalado na garganta, quando se sente desafiado e, no final das contas, isso tem acontecido comigo. Esse lance das charges que produzo diariamente para o Catraca Livre, com críticas políticas, sempre foi algo que tinha vontade de fazer. Achava que não dava e agora, nesse período da pandemia, me vi meio que obrigado a fazer e, de certa forma, tem rolado.
Tem sido bom, na verdade… É um misto de “ser bom” com “ser difícil”. É bom porque você tá em casa e acaba tendo um pouco mais de tempo. No caso, estou aqui em casa e minhas filhas estão aqui também, então fica um clima legal por estarmos todos juntos. Mas por outro lado, é tanto problema, né? Tanta dificuldade, tantas preocupações; preocupação com outras pessoas, com a gente, preocupação com a minha empresa, é um turbilhão de coisas que acabam atrapalhando a concentração. Mas aos trancos e barrancos e à luz da necessidade, tô conseguindo produzir mais do que eu produzia geralmente, então tem rolado.
O que foi difícil foi ter parado de produzir. Tô começando a tentar entrar nos eixos nisso, até agora foi uma espécie de surto de ansiedade produtiva e isso tem me ajudado a lidar com os problemas. Quando paro pra ver uma série, por exemplo, ou pra fazer alguma coisa mais suave, aquelas preocupações voltam e não consigo me concentrar tanto, então o desenho ajuda nesse sentido.
Tem sido bom poder desenhar durante esse período da pandemia porque ajuda a passar o tempo e também ajuda a esquecer um pouquinho dos problemas. Outro fator importante é que as minhas produções nesse período têm tido uma repercussão bem grande e, dessa forma, acho que a gente acaba contribuindo um pouco pro debate público. Lá no Catraca a gente acaba limpando um pouco as redes dos haters mais ferrenhos que não aguentam piadinha com o Bozonaro.