Perigos da violência obstétrica aumentam na pandemia
- 14 de maio de 2020
Por Letícia Ávila
Ilustração de Marina Duarte
A Lei 11.108/2005, mais conhecida como Lei do Acompanhante, assegura às mulheres o direito de ter um acompanhante no trabalho de parto, no momento do parto e no pós-parto em hospitais públicos e privados brasileiros desde 2005. “O direito do acompanhante é um direito da mulher. Com pandemia ou não, a lei não pode ser violada”, afirma Alice Inácio, enfermeira obstétrica e neonatologista. Trata-se de um direito da mulher de possuir um atendimento seguro e de confiança, pelo qual possa se apoiar não apenas na equipe médica, como também em sua família – seja no companheiro ou em outra mulher.
Maternidades e hospitais têm limitado o acesso do acompanhante junto à gestante, seja nos momentos de trabalho de parto, no parto ou no pós-parto, o que pode deixá-las vulneráveis em casos de violência obstétrica. “O acompanhante, não há dúvidas, é um dos maiores inibidores da violência obstétrica”, afirma a defensora pública e coordenadora do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) Thais Dominato.
O Nascer Direito, coletivo com mais de 20 advogadas que atuam no enfrentamento da violência obstétrica, emitiu uma nota técnica com as orientações do acompanhamento do parto logo no início da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).
O documento, que traz recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), afirma que “todas as mulheres grávidas, incluindo aquelas com infecção confirmada ou suspeita por Covid-19, têm direito a cuidados de alta qualidade antes, durante e após o parto”. A nota também aponta que uma experiência de parto segura inclui “ter um acompanhante de sua escolha presente durante o parto”.
A Nascer Direito menciona que, no dia 20 de março, foi aprovado o reconhecimento do estado de calamidade pública diante da pandemia exclusivamente para fins fiscais. “Estamos diante de uma relativização fiscal e não na suspensão de direitos em si, principalmente no que se refere a direitos humanos e garantias fundamentais previstas na nossa Constituição Federal de 88”, respalda a nota técnica.
O artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional salienta que “a implementação deste Regulamento será feita com pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas”. Para se entender a necessidade e validação da Lei do Acompanhante, é preciso conhecer a realidade do parto no Brasil.
De acordo com uma pesquisa do Grupo de Estudos Feministas em Política e Educação (GIRA), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), mais da metade das mulheres ouvidas alterou seus planejamentos de parto (52,7%). O levantamento, feito por todo o Brasil com gestantes e puérperas – ou seja, mulheres que tiveram filho há pouco tempo– no mês de abril de 2020, ouviu 250 mulheres. 90,8% delas disseram que sentiram mudanças sobre como se sentem em relação à gestação.
“A presença do acompanhante já é suficiente para diminuir a dor da paciente porque ele é uma pessoa que vai conseguir dar apoio emocional para essa paciente durante todo o período trabalho de parto”, relata o médico ginecologista e obstetra Ricardo Gomes, chefe da Maternidade do Hospital Universitário.
O acompanhante é um apoio físico e psicológico. Trata-se de uma pessoa próxima que serve como testemunha e companhia de todos os procedimentos que a mulher e o bebê passarão. “Se o acompanhante ainda for bastante pró-ativo, de ajudar a paciente a se levantar, caminhar, ajuda até a acelerar o trabalho de parto”, afirma o médico.
Sobre a importância da presença de um companheiro no parto para a gestante, Ricardo Gomes afirma que “o acompanhante ajuda bastante a mulher porque é uma pessoa de confiança que está com ela lá. Isso, por si só, já acalma a paciente em um momento difícil por conta das dores e das contrações”.
Gomes reforça também que, caso o acompanhante seja o pai do bebê, a presença contribui intensamente para o fortalecimento do afeto entre pai e filho. “Com a mãe, é um vínculo muito mais rápido de fazer porque ela está ali no parto, vai amamentá-lo. Com o pai é um pouquinho mais lento mesmo; e ele estar ali no trabalho de parto, sente-se mais presente, acaba assumindo essa paternidade de uma forma muito mais fácil”.
A enfermeira Alice Inácio explica que a negação do direito ao acompanhante impacta diretamente nas condições do parto e da vinda do bebê para a mãe. “É um momento dela, em que muitas não conseguem ter uma equipe, são pelo SUS mesmo. Não tem nem doula. Muitas não sabem nem o que é uma doula. Não se preparou, não teve uma gestação mais orientada, mais informada. Aí chega no momento do parto, a única pessoa que ela conhece e que ela se ampara e sente confiança é no acompanhante”, afirma.
A Nascer Direito enfatiza que o acompanhante auxilia a mulher em demandas que a equipe de saúde muitas vezes não consegue atuar devido à carga de trabalho, como “pegar água para a mulher, observar sangramentos e relatos de dores fora do usual, buscar um auxílio e socorro se aquela mulher necessitar, auxiliar com o bebê e, inclusive, com a alimentação da própria mulher”. Alice Inácio ressalva que o acompanhante “não tem responsabilidade sobre qualquer sinal clínico que esse bebê ou essa mulher possa apresentar”.
Garantia de direitos das mulheres
Uma em cada quatro mulheres já sofreu violência obstétrica durante sua vida, de acordo com a pesquisa da Fiocruz “Nascer no Brasil”, de 2014. Esta forma de violência está nas práticas que negam o direito da mulher como gestante de ter uma gravidez, um parto e um pós-parto com segurança, dignidade, respeito e autonomia, tanto para si quanto para seu bebê.
A defensora pública Thaís Dominato, coordenadora do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), reflete que se trata de uma violência institucionalizada e naturalizada ao longo do tempo. “A gestante quando está tendo seu filho, não quer questionar o médico, ela acha a vida do filho mais importante, como ela vai interferir em uma decisão médica? Então, é difícil para as mulheres. As pessoas não têm conhecimento que aquilo que elas sofreram é violência obstétrica”.
Os casos ocorrem tanto nas consultas pré-natais, durante o acompanhamento da gravidez, quanto nos hospitais, no decorrer do trabalho de parto, e nas enfermarias, no pós-parto. Podem ser contra a parturiente (quem está em trabalho de parto ou que acabou de parir), contra a criança e até contra quem os acompanha. A violência obstétrica ocorre por parte de equipes de administração de hospitais, de técnicos, de enfermeiros ou de médicos*.
Intervenções cirúrgicas como cesárea agendada sem necessidade e sem informação, também são formas de violência obstétrica. Procedimentos mutiladores que agridem a condição física da mulher, como intervenções cirúrgicas que causem hemorragias, danos na condição sexual e outros tipos, ataques verbais, xingamentos, ameaças e a prática de estelionato, por induzir a mulher a fazer alguma ação, constituem esta manifestação específica de violência.
Além destas agressões mais diretas, ações impeditivas, como não permitir que o acompanhante, tendo parentesco ou não, fique ao lado da mulher durante o pré-parto, parto e pós-parto imediato, assim como não autorizar que a mulher se alimente ou beba água, também caracterizam violência obstétrica.
Não deixar que a mulher tenha contato com seu filho após o nascimento sem caso de intervenção de urgência, bem como realizar intervenções químicas sem necessidade no bebê também são manifestações da violência obstétrica. Em tantas circunstâncias e em condições tão variantes, ainda assim, esse tipo de violência consegue passar despercebido e impune, além de gerar caos no sistema público de saúde referente à ala de obstetrícia e pediatria..
As práticas impeditivas que violam a Lei do Acompanhante, como enfatiza a Diretoria do Coletivo Nascer Direito, já aconteciam inclusive antes da pandemia do novo coronavírus (Covid-19). “As mulheres já tinham seu direito ao acompanhante violado diuturnamente. A pandemia somente escancarou o problema de saúde que temos, a inexistência de ambiência e assistência adequadas, no modelo preconizado pelo Ministério da Saúde e Anvisa”.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que apenas 15% dos partos sejam via cirurgia cesariana, índice baseado nas evidências estatísticas de casos em que a cirurgia é considerada intervenção necessária durante o parto. Entretanto, o Brasil é o país com maior número de cesarianas do mundo, com 56% de cesáreas no sistema público e 88% em hospitais privados. De acordo com dados da Secretaria de Saúde de Mato Grosso do Sul (SES-MS), em 2013, 59% dos partos realizados em Campo Grande foram cesarianas. No estado, o número sobe para 62%. O número alto das cirurgias de nascimento retrata a tradição de cesáreas desnecessárias do ponto de vista clínico.
De acordo com a coordenadora do Nudem, a violência de gênero é aquela que a mulher sofre por ser mulher. “E a violência obstétrica se enquadra nisso. Tem muita relação com a apropriação do corpo da mulher, de não dar autonomia e liberdade pra ela na hora do parto e até mesmo na gestação”, afirma.
A defensora Thaís Dominato também contextualiza o cenário de relativizações de direitos das mulheres em meio à crise provocada pela pandemia, incluindo outras situações, como a questão da violência doméstica e também sobre os direitos sexuais e reprodutivos. “Eu penso que não há dúvidas, de que em momentos de crise econômica e de pandemia, as mulheres sempre têm a vida mais severamente atingida. Isso já foi alertado pela própria ONU”.
Violação do direito ao acompanhante
No dia 6 de abril de 2020, a Defensoria Pública de Campo Grande (DPGEMS) solicitou esclarecimentos à Maternidade Cândido Mariano sobre denúncias de mulheres de que a maternidade estava proibindo a entrada de acompanhantes no momento do parto.
O ofício foi encaminhado pela defensora Thaís Dominato. “A ação civil pública foi proposta porque entendemos que o direito ao acompanhante, que traz benefícios para a mãe e bebê, trata-se de direitos humanos, de direito fundamental da mulher, que não pode ser aniquilado durante a pandemia”, reforça.
A Maternidade divulgou nota que informou a proibição de acompanhantes na sala de parto e centro cirúrgico devido à situação de emergência sanitária ocasionada pela pandemia da Covid-19. A justificativa dada foi a necessidade de evitar aglomerações em locais fechados, dificuldade em conseguir máscaras e equipamentos de proteção individuais e pelo aumento de partos nos últimos dias.
No site da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, a coordenadora do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) destaca que “mesmo diante da pandemia, desconhece-se, até o presente momento, qualquer recomendação dos órgãos competentes para a proibição da presença de acompanhantes das gestantes nas maternidades”.
Em entrevista para a Revista Badaró, a defensora relata que o núcleo levou o caso à instância jurídica. “Nós entramos com a ação civil pública na Vara de Direitos Coletivos, perdemos o pedido de liminar, o juiz entendeu que a Maternidade estava certa de restringir, recorri; o desembargador então concedeu o direito ao acompanhante, mas colocou as condições que dificultam bastante a entrada. É uma decisão provisória e o que está valendo por enquanto”.
Tivemos acesso aos documentos do pedido de Ação Civil Pública da Defensoria de Mato Grosso do Sul (DPGEMS) e da decisão em segunda instância, que coloca condições à gestante para a lei federal do acompanhante, que são, com suas próprias despesas: uso de todos os EPI’s, desde luvas de procedimento e máscara N95, não ser do grupo de risco para COVID-19 e apresentar resultado de exame negativo para o vírus SARS-CoV-2 (o novo coronavírus).
A decisão emitida pelo Juiz, na avaliação da enfermeira obstétrica e neonatologista Alice Inácio, acabou visando as condições financeiras e logísticas da Maternidade Candido Mariano. Para ela, a única medida realmente plausível é a exclusão de acompanhantes do grupo de risco. Sobre os testes, a enfermeira avalia que, mesmo que o acompanhante trouxesse um exame negativo de Covid (que demora 48 horas para ficar pronto), o parto apresenta uma data provável, não correta.
“Mesmo durante as 48 horas, o acompanhante poderia ter sido contaminado pela Covid19 e, em uma janela imunológica até a detecção do vírus no corpo humano, apresentar um exame negativo. A realização do teste particular custa de 300 a 400 reais. E as que são SUS? A grande maioria das nossas mulheres são SUS. Então elas não têm esse acesso”.
A enfermeira enfatiza os testes rápidos como possibilidade eficaz, que deveriam ser realizados no acompanhante assim que a gestante fosse internada, como os testes de Sífilis e de HVI, em casos de paciente sem acompanhamento adequado do Pré-Natal. Ainda, Alice avalia que a máscara N95 é de difícil localização e compra. “Elas relatam que estão exigindo muita coisa mas que eles mesmo não estão fazendo. Isso está gerando nas mulheres uma ansiedade, uma dúvida e um medo muito grandes. Precisamos nos cuidar para não propagarmos o vírus. Agora, a proibição não cabe”.
Segundo informações da Nascer Direito, o Ministério da Saúde recomendou em nota técnica, em 25 de março de 2020, que seja mantida a presença do acompanhante em caso de pessoa assintomática e sem contato com pessoas doentes. A restrição é apenas para casos excepcionais, em que a gestante ou o acompanhante apresentem sintomas e tenham prescrição de isolamento.
A defensora Thaís Dominato afirma que o direito do acompanhante segue tendo respaldo legal, e que sua importância é reforçada, pois interfere diretamente nas condições da violência obstétrica. “Tem fundamento em Tratados Internacionais, leis federais (Lei do Acompanhante e Eca), resoluções da Anvisa… Durante a pandemia, o Ministério da Saúde não vedou esse direito, ao contrário, recomendou. Muitos outros estados não estão fazendo essa restrição”.
Procuramos um posicionamento dos hospitais de Campo Grande sobre a situação da Lei do Acompanhante em tempos de pandemia e dos procedimentos adotados nos momentos de trabalho de parto, parto e pós-parto. A Maternidade Cândido Mariano reforçou as restrições “cumprindo a Instrução Normativa DT/04-2020, que determina algumas medidas de prevenção ao coronavírus, estabelecidas pela Maternidade com base na decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e ajuizadas pela Defensoria Pública do Estado, que em situação de pandemia se sobrepõem o direito da coletividade sobre o direito individual”.
A Santa Casa de Campo Grande, afirmou em nota e se posicionou, desde o dia 25 de abril de 2020, que as pacientes “não terão direito a acompanhante pacientes em trabalho de parto (normal ou cesariana), no centro obstétrico e pacientes internadas para tratamento de intercorrências clínicas da gestação. Pacientes no pós-parto, quando forem direcionadas ao alojamento conjunto, passam a ter direito à presença de um acompanhante, porém sem visitas ainda”. Ainda, também valeu-se do argumento do “público sobre o privado em uma “interpretação” da Lei”: […] e considerando também, a Lei Federal nº 11.108, de 7 de abril de 2005, interpretada sob a ótica do princípio do interesse público sobre o privado”.
Na contramão, o Hospital Universitário (HU) reiterou em nota que “tem um atendimento bastante humanizado, principalmente na maternidade. Sempre foram permitidos acompanhantes, incluindo pré-natal, parto e pós-parto. Também nunca houve impedimento para troca de acompanhantes nem para o acompanhamento de doulas”. Sobre a situação da Lei do Acompanhante durante a pandemia, o HU argumentou que a restrição acontece apenas nas consultas, mantendo o cumprimento da lei no parto e no pós-parto, solicitando que os acompanhantes não estejam no grupo de risco (idosos, cardiopatas, diabéticos, hipertensos). Afirmou também que estão fornecendo os EPI’s, como máscaras, luvas e álcool em gel.
Diante de diferentes posturas hospitalares sobre a Lei do Acompanhante, procuramos o Coletivo Nascer Direito para mais detalhamentos sobre essa questão em outros estados brasileiros. De acordo com a diretoria do Coletivo, muitas maternidades restringem ou proíbem a entrada do acompanhante, seja na entrada da internação, seja somente após o nascimento, ou ainda permitem um parente apenas por uma hora. “O que estamos percebendo é que a situação de segurança da saúde é realmente caótica, em alguns estados, mas nada justifica proibir de entrar e permanecer ao lado da mulher”.
A Nascer Direito reforçou a presença do acompanhante como parte fundamental do processo do parto que, por se tratar de um evento familiar, “não deve se restringir somente à equipe assistencial reduzida, deixando a mulher sem uma referência de segurança e conforto emocional, como é a figura do acompanhante. Portanto, entendemos que há mais malefícios que benefícios a retirada do acompanhante do cenário do parto”.
Segundo o médico obstetra e ginecologista, Ricardo Gomes, “o parto é um momento muito importante para a paciente, e ter alguém, ajuda ela a compartilhar essas alegrias”. Gomes também enfatiza que, a comunicação da gestante com a equipe médica é facilitada com a presença do acompanhante. “Às vezes, ela está em um estágio que ela não consegue se comunicar muito bem, seja pela dor, seja por vários outros fatores emocionais. E o acompanhante é uma ponte entre a equipe assistente e a paciente”.
Para a coordenadora do Nudem, as mulheres que se sentirem seus direitos lesados devem entrar em contato com a Secretaria de Saúde, com as Ouvidorias dos hospitais e das maternidades e também no Nudem. “Eu acho que as denúncias sempre são importantes porque elas que fazem, muitas vezes, essas instituições reverem os posicionamentos. Se a gente aceita calado, não há muita mudança”.
*Alguns trechos específicos desta reportagem que exemplificam a violência obstétrica foram utilizados do livro-reportagem “Parto: Outro Lado Invisível do Nascer”, escrito pela jornalista e mestre em Comunicação Letícia Ávila em 2017.