Há receptores de maconha dentro de você

Por Marina Duarte
Colaborou Norberto Liberator

O corpo humano metaboliza substâncias canabinoides naturalmente. Não é uma teoria ou boato, é fato científico: o sistema endocanabinoide teve sua identificação iniciada na década de 1990, depois da primeira descoberta de que existem, em nosso cérebro, receptores que interagem naturalmente com o Tetrahydrocannabinol o THC, componente da maconha responsável pelo “barato”, isolado pela primeira vez em 1964 por uma equipe de químicos chefiada pelo búlgaro Raphael Mechoulam na Universidade Hebraica de Jerusalém. 

O primeiro endocanabinoide presente no organismo humano a ser descoberto  foi a anandamida, chamada de “substância da felicidade”, que, quando ativada, gera uma sensação de prazer e relaxamento. Ela foi percebida pela primeira vez em 1992. Mechoulam a batizou desta forma devido à palavra sânscrita “ananda”, que significa “alegria suprema”. A partir daí, as pesquisas progrediram e resultaram no atestado científico de que a interação da Cannabis com o corpo de animais incluindo o Homo Sapiens Sapiens tem potencial terapêutico. 

Tal fator medicinal da Cannabis é relatado historicamente, mas também pode ser entendido  como fisiológico: é que o sistema endocanabinoide conservado ao longo dos anos em várias espécies de animais é responsável  pela manutenção da homeostasia das células, “que significa manter a célula dentro do seu melhor estado de funcionamento”, explica Erik  Amazonas, médico veterinário, professor e pesquisador canábico na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 

Erik trabalha com a terapia via Cannabis para animais, além de ser divulgador científico dos benefícios da planta. O pesquisador explica que o sistema endocanabinoide foi e é crucial para a manutenção das espécies, já que existe em animais, desde os extremamente primitivos, há mais de 200 milhões de anos.

“Isso nos traz a percepção de dois fatos”, afirma. “O primeiro é que os sistemas biológicos da maioria das espécies animais é tão dependente desse sistema que ele aparece, evolutivamente, antes de outros tidos como indispensáveis à vida dos animais superiores, como o sistema respiratório ou cardiovascular; o segundo é que o uso da Cannabis, seja ele qual for, surgiu e, de certa forma, se moldou para suprir o bom funcionamento desse sistema.”

O sistema endocanabinoide existe há centenas de milênios. A Cannabis é mais recente: a planta e seus compostos apareceram no planeta há mais de 6 milhões de anos.

A relação humana com o vegetal que faria interação direta com os receptores canabinoides humanos traria laços profundos, tendo sido uma das primeiras plantas domesticadas pela humanidade. Amazonas salienta que “o uso da Cannabis pelo homem ao longo dos milênios perpassou muitos motivos: foi alimento, proveu abrigo por meio de  vestuários e componentes de habitações, foi combustível, foi usado espiritualmente, enfim,”, conclui, “todas essas razões, exceto o uso como combustível ou abrigo, estão diretamente ligadas ao sistema endocanabinoide, há muito existente”.

A metabolização de canabinoides, ao que parece, tem importância ímpar em todas as fases do ciclo vital humano, pois se encontra presente desde o estágio de geração embrionária, gestação e até mesmo no leite materno. Estudos apontam que endocanabinoides têm papel na regulação da ovulogênese, transporte embrionário, desenvolvimento da placenta e várias funções reprodutivas. Já no leite materno, alimento mais completo e crucial para o lactente em todos aspectos, os endocanabinoides auxiliam na estimulação do apetite, crescimento e desenvolvimento do recém-nascido. 

Os fitocanabinoides (substâncias canábicas utilizadas em tratamentos de doenças), por sua vez, não são grandes vilões, como costuma ser afirmado por setores reacionários da sociedade. São encontrados na versão vegetal cheia de canabinoides e sua ministração se faz eficiente na atuação sobre os receptores, fortalecendo o sistema, melhorando o processo de homeostasia (ou seja, o equilíbrio do organismo) e estimulando várias das inúmeras partes de nosso corpo que contam com esses processos para funcionar com bom desempenho.

O resultado é boa resposta no uso desses canabinoides exógenos para o auxílio  na recuperação em doenças específicas dos sistemas imunológico e neurológico, assim como em casos de câncer, na regulação de emoções e outras funções corporais.

O consumo da Cannabis in natura como medicação, ou seja, o extrato de sua flor pura sem isolamento de moléculas específicas traz maior harmonia e possibilidades ao controle da homeostasia celular, gerando o que se chama de “efeito comitiva” ou efeito sinergético. “Podemos relacionar o resultado do efeito comitiva como a comparação existente entre uma música sendo executada por um único instrumentista versus a mesma música executada por uma orquestra de 40 instrumentistas”, comenta Erik. “A música de um único instrumentista pode soar magnífica, ser identificada, mas jamais proporcionará a experiência auditiva daquela interpretada pelo conjunto completo, em toda a sua harmonia, profundidade e nuances”.

Dentro do corpo de várias classes animais, conseguimos encontrar essas moléculas imprescindíveis para o funcionamento de seus organismos e que também se encontram na erva. Exógenos ou endógenos, canabinoides se fundem com a existência humana, estando presentes em nosso metabolismo ou, desde a Antiguidade, na forma de matéria prima para vários fins, sendo o efeito psicoativo uma das infinidades de potenciais da planta mais polêmica do planeta.

Esta é a primeira parte da série de reportagens Uma viagem pela Cannabis. Para acompanhar as próximas matérias, clique no índice!

MARINA DUARTE

produtora-executiva

Ilustradora, acadêmica de psicopedagogia, estudou jornalismo. Militante feminista interessada na profunda transformação social.

Norberto Liberator

Editor-chefe

Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

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