Como a pandemia afeta uma aldeia indígena

Por Adrian Albuquerque e Guilherme Correia
Ilustrações por Fábio Faria

Mato Grosso do Sul possui a segunda maior população indígena aldeada do Brasil, apenas atrás do Amazonas. No município de Caarapó (MS), a 118 quilômetros da fronteira com o Paraguai, mais de cinco mil indígenas de etnia guarani-kaiowá vivem em território que possui 3.600 hectares de reserva. Nele, está a aldeia Te’yikue.

De acordo com boletim epidemiológico elaborado pelo Ministério da Saúde, o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Mato Grosso do Sul não possui casos confirmados de covid-19. Cinco foram descartados após o processo de testagem. Caarapó teve as primeiras notificações em 7 de maio, segundo a Secretaria de Estado de Saúde (SES).

Desde que iniciou-se a pandemia do novo coronavírus, a preocupação de várias pessoas que residem em Caarapó se tornou cada vez maior. Professor na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e morador da aldeia, Eliel Benites relata que aspectos da cultura local dificultaram a prática do isolamento social na região, uma das principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) contra a disseminação do vírus. “Temos agora uma grande dificuldade de fazer a comunidade entender essa doença, e para convencê-los a ficar em quarentena. A realidade indígena é totalmente diferente, a própria aldeia é uma área aberta. Não tem como você ficar isolado”.

Não parou

“Aqui tem muitos trabalhadores que atuam em usinas que não pararam de trabalhar. São várias turmas trabalhando em usinas de álcool. A gente não sabe até que ponto estão seguras no trabalho”.

A empresa brasileira de energia sucroalcooleira Raízen possui uma unidade localizada na BR-163, a 12 quilômetros do perímetro urbano de Caarapó. De acordo com Eliel, cerca de 200 indígenas da aldeia trabalham na Raízen e continuaram as atividades normalmente durante início da pandemia. “Não sabemos como é o contato com as demais pessoas da usina, que muitas vezes vêm de longe, do litoral, de São Paulo. Essas usinas não param porque ‘a economia não pode parar’, porque são ‘empresas internacionais’”, diz.

Questionada sobre as condições de trabalho oferecidas pela empresa, tendo em vista uma possível infecção por parte dos funcionários, a assessoria de comunicação da Raízen disse ter doado sabonete líquido, álcool em gel e distribuído máscaras para todos os funcionários e suas respectivas famílias. Panfletos com recomendações médicas, traduzidos em guaraní, foram espalhados também.

Outra questão levantada pelo professor é o pagamento dos benefícios e auxílios destinados ao povo nativo, que só podem ser sacados quando vão para a zona urbana. “A tradição indígena é que quando vai pra cidade, vai todo mundo: família, esposa, filhos. É um momento muito importante para cada família no recebimento e é sempre uma grande aglomeração no início de cada mês”. 

Eliel compara a situação com outros municípios ao sul do estado, que também dependem da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). “Acredito que também é comum em outras áreas, Dourados, Amambai e regiões fronteiriças. O isolamento é muito difícil e ao mesmo tempo há a dificuldade de alimentação”.

Crise hídrica

De acordo com pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 34,7% dos municípios brasileiros registraram avanços de epidemias ou endemias relacionadas à transmissão hídrica nos últimos anos.

Em Mato Grosso do Sul, a Pesquisa de Informações Básicas Municipais, realizada pela última vez em 2017, revelou que apenas 30 dos 79 municípios do estado possuem saneamento básico. Além disso, segundo a base de dados da pesquisa, o plano em Caarapó ainda está em elaboração.

Segundo a professora e pesquisadora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Ana Lucia Pontes, a disseminação de vírus em aldeias tende a ser muito mais rápida do que em regiões urbanas, devido a todo o contexto sanitário. “Aconteceu surto de H1N1, influenza, em outras epidemias anteriores, outras gripes. Vimos que rapidamente uma comunidade toda, ou boa porcentagem é atingida”.

Ela reforça que o baixo índice de casos notificados não representa a realidade da situação, assim como se percebe a subnotificação dos casos de maneira mais ampla no contexto nacional devido à falta de testes. “Há um estrangulamento, mortes atrasadas que não foram contabilizadas. Não é motivo pra ficar tranquilo”.

Adaptação

Moradores de Te’yikue tiveram de se adaptar devido à falta de recurso advindo do poder público. Uma das alternativas foi a divulgação de instruções por meio de um carro de som que percorre em vários pontos do território.

De acordo com a coordenadora técnica do Polo Base da Secretaria Especial de Saúde Indígena de Dourados (SESAI/MS), Indianara Ramires Machado, foram disponibilizados 280 testes para indígenas do Estado. “O atual protocolo de testagem só em pacientes graves. Não tem como prever se é por causa da testagem [o baixo número de casos notificados]. Dependendo da testagem, vamos ver um outro panorama. Vai ser suficiente para pelo menos ter um norte”. 

Caso a doença chegue em algum nativo e este precise de tratamento médico, para além da reclusão, ele deverá ir para o município de Dourados, que atenderia todas as aldeias ao sul. “Alguns municípios possuem apenas três leitos em hospital particular. Se a comunidade não faz o distanciamento e caso haja um boom dentro das comunidades, vai ser uma tragédia. Dourados tem vários leitos e mesmo com o Hospital Universitário sendo referência, ainda mais no atendimento com comunidades indígenas, além de nós, virão pacientes de 29 municípios do ‘cone-sul’”.

Desde quarta-feira (6), se iniciou testagem específica para comunidades nativas, por meio do teste rápido. Por dia, 10 indígenas aldeados são testados no estado.

A cerca de 233 quilômetros dali, na aldeia Água Azul, situada no município de Dois Irmãos do Buriti (MS), o líder indígena Ageu Reginaldo gravou um vídeo para orientar os moradores, de etnia Terena, a se precaverem contra a possibilidade de contrair o vírus. O município fica a 50 km da capital Campo Grande, e foi a primeira cidade do interior a registrar caso de coronavírus.

Questionada sobre a situação de aldeias indígenas sul-mato-grossenses em relação à infecção por covid-19, a assessoria de comunicação da Fundação Nacional do Índio (Funai) disse que a saúde indígena compete apenas à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão ligado ao Ministério da Saúde.

A Sesai informou, em nota, que implementa ações para orientar comunidades indígenas, gestores e colaboradores em todos os 34 DSEIs desde janeiro deste ano, antes mesmo do início da pandemia chegar no país.

O professor Eliel também faz parte do comitê de combate ao coronavírus em aldeias de Caarapó, e comenta não há um trabalho ideal de orientação por parte da Funai. “Poderia haver uma orientação densa nas aldeias em consonância com a Secretaria. Mas não há. Os poderes públicos acabam cada um atuando na sua jurisdição. A questão indígena deveria ser ‘interdisciplinar’ entre municípios e Sesai, e a Funai enquanto coordenadora geral disso tudo”.

Fontes internas da Sesai dizem que as Secretarias Municipais de Saúde têm uma parte da responsabilidade para além da que compete ao Ministério da Saúde. “O que contam nas reuniões é que muitas Secretarias Municipais não querem atuar em área indígena. Parece que o recurso é cedido aos municípios”, afirma um profissional que atua em um dos polos em Mato Grosso do Sul, que preferiu não se identificar.

As perguntas às pesquisadoras Ana Lúcia Pontes e Indianara Machado foram feitas pela produção da reportagem durante entrevista delas ao programa Aduems Entrevista, do canal Aduems Oficial. Matéria editada às 23h22 do dia 8/5/2020 para acréscimo de informação.

Adrian Albuquerque

Repórter e diretor de audiovisual

Jornalista, editor de vídeo, sucinto e entusiasta de alguns filmes. Interessado em artes, cultura e política. Diretor do documentário “Isto não é uma entrevista”.

Guilherme Correia

Repórter e Subdiretor de arte

Estudante de jornalismo. Entusiasta de muitas coisas, do futebol ao audiovisual. Interessado em educação, cultura e pautas sociais.

Fábio Faria

Diretor de arte

Estudante de jornalismo e ilustrador. Interessado em artes, cultura e assuntos do espectro político.

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