Lídia Baís: 120 anos de rebeldia e pionerismo

Por Marina Duarte e Mylena Fraiha
Colaborou Norberto Liberator

“Por minha causa, vocês ficarão na história”. A frase, atribuída à artista campo-grandense Lídia Baís, é a síntese do legado de transgressão e ousadia presentes em sua vida e sua obra. Nascida em Campo Grande no dia 22 de abril de 1900, a pintora, escritora e compositora tornou-se uma importante figura artística do estado de Mato Grosso do Sul, à época parte de Mato Grosso.

Lídia nasceu no berço da família Baís, uma das mais abastadas do antigo Mato Grosso unificado. Era filha do imigrante italiano Bernardo Franco Baís, um dos mais prósperos comerciantes e empresários de Mato Grosso no início do século XX. Devido ao status econômico e social de sua família, Lídia teve a oportunidade de residir em grandes centros de produção artística, como o Rio de Janeiro, onde teve aulas na Escola Nacional de Belas Artes. Entre seus professores estava Oswaldo Teixeira, um dos principais pintores e críticos de arte do Brasil; além dos irmãos Rodolfo e Henrique Bernardelli, também pintores, nascidos respectivamente no México e no Chile, que vieram viver no Brasil para ensinar pintura à família real. A artista também residiu por um curto período de tempo em Paris, onde estabeleceu relações com artistas surrealistas, como Murilo Mendes e Ismael Nery. 

Lídia era a encarnação das contradições e angústias do processo de modernização no Brasil, uma vez que se mostrou uma mulher com comportamento progressista e obra de vanguarda para o tempo e lugar em que vivia. 

Ilustração por Marina Duarte

Entre os rótulos de rebelde e louca 

O estilo de Lídia não condizia com os padrões e costumes de uma família da alta sociedade campo-grandense. O clã Baís, ainda arraigado em uma moralidade conservadora, não aprovava suas escolhas profissionais. Lídia direcionava sua rotina às criações em pintura e piano, negando-se a cumprir o papel relegado à mulher na época, como se preparar para um casamento.

Essa postura rebelde e a fuga para o Rio de Janeiro  foram fatores essenciais para que seus irmãos e pai a obrigassem a voltar para sua terra natal, a partir da interdição de seus bens.

Devido às experiências mediúnicas que Lídia afirmava ter, a artista foi internada em uma clínica psiquiátrica pela família. A condição dada por Bernardo Franco Baís a Lídia para que saísse da internação era o matrimônio. A artista aceitou, assim, se casar com o advogado Ary Ferreira Vasconcelos. Cinco dias após o casamento civil, a artista se divorciou.

Lídia Baís era conhecida por reivindicar lugar em espaços e posições sociais que eram considerados masculinos. De acordo com a historiadora e pesquisadora Fernanda Reis, a obra artística e os comportamentos de Lídia expressavam um rompimento de padrões, mas não eram impulsionados por um pensamento feminista em si. “Ela tem toda uma trajetória de resistência, de romper limites e quebrar tabus a partir de determinados comportamentos e de sua própria produção artística. Mas foi um movimento muito solitário. A gente tem que considerar o lugar social que a Lídia ocupava, ou seja, uma família branca, rica, com a oportunidade de viajar muito, mas não há indícios de algum envolvimento direto dela com as questões do feminismo”. 

Tão envolvida na história de Campo Grande, a família Baís fez parte do processo de modernização da cidade, como a construção da primeira ferrovia, que marcou a história da cidade e da família. Bernardo foi um dos impulsionadores da instalação – houve até trilhos do trem passando em frente à casa da família. O fim do comerciante se deu nesses trilhos: ele morreu atropelado pelo próprio trem.

O transcendente e o feminino em sua arte  

A espiritualidade, a religião e o feminino sempre foram temas recorrentes na vida de Lídia Baís. De acordo com Fernanda Reis, a busca espiritual foi parte importante na trajetória da artista. “Lídia tinha uma fé muito grande. Ela se filiou à Ordem Terceira de São Francisco e foi batizada com o nome de Irmã Trindade. Isso na trajetória artística dela foi muito importante, porque ela começou a assinar suas obras com um ‘T’ antes do nome – ou seja, T. Lídia Baís ”. 

Essa inclinação para as questões relacionadas à espiritualidade eram expressadas em suas obras, seja na pintura, na música ou na literatura. Em seu livro “Lídia Baís: arte, vida e metamorfose”, Reis aponta que a artista nutria forte interesse pelo sincretismo, algo evidenciado em suas pinturas, como a obra Alegoria profética, que incorpora a figura de anjos e orixás. 

Durante muito tempo, Lídia se empenhou em estudar sobre diversas manifestações religiosas, sem se restringir ao catolicismo tradicional. A artista frequentou centros espíritas, cartomantes, videntes, seitas religiosas – comportamento que não era visto com bons olhos pelos seus familiares. De acordo com Reis, a espiritualidade que Lídia cultivava fugia da lógica dominante, principalmente das que eram estabelecidas a uma mulher da alta classe. “Havia um preconceito muito grande da sociedade, considerando o fato de ela ser rica e ter que cumprir um ritual de comportamento”. 

Em suas obras, Lídia também explorou questões de gênero e política. O sagrado e o profano misturavam-se em suas representações do corpo feminino e das simbologias religiosas. 

Na pintura Virgem com a Cruz, Lídia Baís representou um nu feminino, coberta apenas por uma fina e transparente túnica em volta de sua cintura. Como aponta Fernanda Reis em seus artigo A representação feminina na pintura de Lídia Baís, publicado na revista científica Cordis, essa obra representa a mistura entre o sagrado e profano, o ingênuo e o provocativo. “Ao carregar uma cruz, Lídia Baís estabelece uma relação entre o sentido do sagrado e do profano em uma imagem que remete ao puro e ao pecado, simultaneamente”.

Ilustração por Marina Duarte

Legado

Ao lançar um olhar para a atual produção artística sul-mato-grossense, feita especialmente por mulheres, o legado de Lídia Baís é visto no pensamento e na obra artística da nova geração de artistas. 

Também influenciada pela trajetória da pintora campo-grandense, a artista Kim Weiss relembra o seu primeiro contato com a obra de Lídia foi em um passeio escolar.  “Eu visitei a Morada dos Baís em um passeio da escola. Era muito pequena e, nessa visita guiada, achei tudo muito interessante. A cama pequena, os quadros, tudo ficou na minha cabeça. Eu tenho a Lídia como o meu primeiro contato genuíno com a arte, no sentido de conseguir reconhecer como arte, mesmo sendo criança”. 

No que diz respeito às influências, Kim ressalta que seu o processo criativo é inspirado na forma que Lídia Baís pensava suas produções artísticas. “Ela [Lídia Baís] é o meu referencial artístico, mesmo muitas pessoas da minha idade não a conhecendo. Ela vem para mim como esse modelo de pensar o processo de criação artístico. Eu acho que a Lídia me impacta com sua forma de pensar o mundo. Além disso, a forma que ela viveu me impactou e ainda ressoa em mim”. 

Com o objetivo de unir as mulheres que produzem artes em Campo Grande, Kim, junto a outras artistas, criaram o coletivo Descendentes de Lídia que atua com o objetivo de fortalecer o trabalho artístico feminino na região. 

Mylena Fraiha

Mylena Fraiha

Editora-executiva

Jornalista e pesquisadora em comunicação. Possui interesse nas áreas de meio ambiente, política e direitos humanos, além de produções audiovisuais.

MARINA DUARTE

MARINA DUARTE

produtora-executiva

Ilustradora, acadêmica de psicopedagogia, estudou jornalismo. Militante feminista interessada na profunda transformação social.

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