Presidência insustentável
- 26 de março de 2020
Não seria surpresa que o projeto de governo elaborado por Jair Bolsonaro se concretizaria de maneira autoritária, antidemocrática e irracional caso fosse o escolhido nas eleições presidenciais, levando-se em consideração os posicionamentos ideológicos evidenciados em toda sua carreira. Entretanto, as cenas que se tem presenciado no jogo político brasileiro em relação à postura de Bolsonaro enquanto chefe de Estado se mostram, mais do que inaceitáveis, criminosas. A cada dia que permanece no cargo, os danos para a saúde pública e para a vida de milhares de pessoas se tornam cada vez maiores.
O argumento de que Bolsonaro tem sustentado uma prática genocida passa longe de ser um exagero ou de ter pretensões alarmistas. O jornal The Intercept Brasil obteve acesso a um relatório exclusivo da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão responsável pelo monitoramento do avanço do vírus no país, que aponta para um cenário grave. Segundo a Abin, a projeção é de que 5.571 brasileiros devem morrer por Covid-19 até o dia 6 de abril caso a curva epidêmica seja semelhante à situação de países como Itália, Irã e China – tendo em consideração que um dos parâmetros metodológicos utilizados para compreender o contágio tem sido a comparação dos movimentos de contaminação entre os diferentes países. Nos informes publicados, a Abin enfatiza a necessidade de medidas de contenção, entre elas a quarentena. A reportagem do site também revelou que o relatório em questão foi enviado para o presidente e para todos os governadores.
Não obstante Bolsonaro tivesse conhecimento do alerta realizado pela Abin, o presidente realizou um pronunciamento em TV aberta no qual contrariou as diversas recomendações dos órgãos de saúde, criticou a ação efetiva dos governadores e relativizou a gravidade da doença que já matou, até então, 77 pessoas no Brasil e mais de 8 mil na Itália. Bolsonaro vai na contramão de uma imensa campanha de redução de danos em parceria de diversos setores da saúde, dos governos estaduais e municipais, assim como de frações da sociedade civil. O resultado de uma ação simbólica tão perigosa tem desfechos nocivos no plano prático: diversos grupos da base eleitoral do político, como também pessoas sem acesso à informação podem acreditar nas advertências do Presidente – afinal de contas, trata-se do cargo mais alto da política brasileira –, o que consequentemente tende a piorar os quadros de contágio da doença.
Atores políticos que em outras situações se destacaram por discursos extremistas, intolerantes e que surfaram na onda Bolsonaro para ganhar votos nas eleições de 2018, como os governadores João Dória (PSDB-SP), Ronaldo Caiado (DEM-GO) e Wilson Witzel (PSC-RJ), mostraram racionalidade diante da possibilidade de um cenário catastrófico: apoiaram as medidas de isolamento, investiram na construção de leitos e se uniram aos outros representantes estaduais em prol da renda mínima aos cidadãos economicamente mais vulneráveis.
Contudo, Bolsonaro e seus apoiadores dos setores econômico e político insistem prosseguir na defesa cruel dos próprios interesses. Em um momento de crise num país de dimensão continental e com desigualdades sociais em nível gigantesco como o Brasil – reflexo de um colapso das democracias liberais e do projeto neoliberal –, Bolsonaro, em vez de se colocar mínima e racionalmente como um chefe de Estado, ignora as orientações que se tornaram consenso entre a comunidade médica, as recomendações da OMS e exemplos calcados em dados, de que o isolamento social é uma das medidas mais eficientes para a contenção temporária do vírus.
Aparelhado a uma classe dominante abominável, que relativiza a morte em massa em detrimento do funcionamento regular da economia de mercado, o presidente normaliza e debocha da situação. Na última segunda-feira, 23, o empresário paranaense Junior Durski divulgou um vídeo nas redes sociais em que critica a paralisação por conta da Covid-19. Para Durski, as consequências econômicas serão uma perda maior do que a vida de “5 mil ou 7 mil pessoas que vão morrer”. A postura está alinhada ao pronunciamento de Bolsonaro, que pediu para as empresas continuarem a operar em prol da economia. O projeto plutocrata do presidente não admite qualquer forma de manter a estabilidade econômica sem penalizar os mais pobres, como a taxação de grandes fortunas ou aumento de impostos para bancos.
A relativização irresponsável que Bolsonaro faz da pandemia da Covid-19 é incompatível com a postura minimamente aceitável de um presidente da República. Muito mais do que não responsável, a atitude se configura como ato criminoso e genocida. Está mais do que evidenciado por especialistas a necessidade de isolamento social, devido ao fato de a doença ser facilmente contagiosa e ter altas chances de letalidade em grupos de risco. A orientação, neste sentido, tem como finalidade a redução de danos para uma propagação em massa do vírus – como evidenciado de maneira mais trágica na Itália, país onde o sistema de saúde entrou em colapso e tem encontrado dificuldades para lidar com a gravidade da situação.
Embora o Sistema Único de Saúde (SUS), sucateado por políticas do próprio governo, tenha capacidade de amortecer o impacto causado pelas consequências do vírus, o serviço tem grandes chances de entrar em estagnação devido à falta de estrutura suficiente para atender o alto número de pacientes. Também se mostra importante ressaltar que, além das vítimas da Covid-19, outros problemas de saúde recorrentes na vida cotidiana também demandam vagas e estrutura material dos hospitais, como acidentes domésticos e de carro, indivíduos com dengue, influenza e pacientes que fazem tratamentos em combate ao câncer.
Diante da atitude imprudente e criminosa de Bolsonaro – que considera o lucro do mercado financeiro mais importante do que vidas humanas – e da total adesão a tal projeto genocida por parte de seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, faz-se necessário o afastamento do governo. Cada dia de Jair Bolsonaro na presidência da República representará um alto potencial de enfermidades e mortes. A Badaró acredita que Bolsonaro não possui mais qualquer sustentação para se manter no cargo. Em um momento no qual o debate público deliberado pessoalmente (chave para a construção coletiva de possíveis soluções) mostra-se inviável, há necessidade de os diversos setores de oposição – já ocupados na tentativa de conter os danos do poder Executivo – refletirem sobre os possíveis caminhos e as estratégias políticas viáveis para o afastamento de Bolsonaro de um cargo para o qual ele não possui condições morais e políticas de comandar.